Amor à Flor da Pele, de Wong Kar-wai, mostra na exata medida como a vida, pequena e constrangida, transcorre distraída diante do épico
Situações extremas como revoluções e amores impossíveis sempre forneceram farto material para o cinema. Combinados, tais argumentos serviram, como sempre, tanto para filmes de primeira como para degenerações oportunistas de matrizes temáticas, em que Capuletos e Montecchios se disfarçam de polícia política de um Estado com suas opressões, truculências e o que mais se queira dizer em ideologias libertárias ou nem tanto assim. Não é difícil imaginar o que Wong Kar-wai poderia explorar em Amor à Flor da Pele, uma história ambientada em Hong Kong nos anos em que se confundiam os intermináveis movimentos da Revolução Chinesa e a igualmente longa contagem regressiva para o fim da tutela britânica e a consequente anexação por Pequim. O filme, contudo, não cede à tentação e leva a cabo uma missão mais árdua, que é a de mostrar que a vida, pequena e constrangida, transcorre distraída no mais das vezes diante do épico, mantendo mesmo assim a coerência com o lugar e a época.
No caso, é a Hong Kong da década de 60, a mesma onde Kar-wai cresceu. Como ele, são imigrantes de Xangai os senhorios que alugam, portas lado a lado num velho e decadente prédio, quartos para uma secretária (a bela Su Li-Zhen) e seu marido – o representante de uma empresa que viaja com frequência para o Japão –, e um jornalista (Chow Mo-Wan) e sua mulher – funcionária de um hotel que chega sempre tarde. Educados, corteses, tímidos, Li-Zhen e Chow vão se aproximar depois que descobrem que seus respectivos cônjuges andam tendo um caso. Amantes, aliás, que nem sequer aparecem na tela, quando muito ouvimos, só de vez em quando, suas vozes.
O recurso dá a impressão, a princípio, de ser mais um de uma certa heterodoxia errática do filme, com seus closes demorados em pratos e relógios e cortes rápidos de passadas, escada acima e escada abaixo. Mas a ocultação dos personagens não é gratuita: ao estreitar o universo da narrativa, Kar-wai extrema o desamparo de Chow e Li-Zhen – um desamparo que se expressa na relação desajeitada, quase anódina dos dois, combinada à perfeição com uma cidade que não alardeia – apenas sugere, na medida exata – o medo do comunismo ou a decadência e a pobreza visível antes de seu boom capitalista.
No calor, na chuva constante, nos espaços apertados – corredores, quartos, vielas e escritórios –, o par de Amor à Flor da Pele não tem como viver uma paixão cinematográfica. Oprimidos por natureza, “educados” e reservados, Chow e Li-Zhen só conseguem recorrer a artifícios para sustentar a convivência clandestina – escrever histórias de artes marciais (!), por exemplo – ou para expressar sua dor. Numa cena belíssima do filme, Li-Zhen arranca, em um “ensaio” com Chow, a confissão de traição de seu marido. Em outra, na mesma circunstância, experimenta o que seria se separar de Chow.
É uma paixão que resiste a se mostrar, que segue seu curso como possível em uma cidade que vive, de fato, um momento crucial em sua história. Mas Kar-wai tem, tanto numa coisa quanto na outra, a delicadeza de não gritar isso em nosso ouvido. Quem puder, que aceite o estranhamento dos boleros da trilha sonora; se preferir, que entenda o desmantelamento da vizinhança em 1966. E, se nada disso for suficiente, que fique simplesmente com a imagem final do segredo sussurrado nas ruínas de uma civilização que já foi grande.
BRAVO!, março de 2001
© Almir de Freitas