Fé na estrada

Na linha dos road movies otimistas, Lisbela e o Prisioneiro  e O Caminho das Nuvens buscam o rosto do mítico povo brasileiro

Parafraseando Umberto Eco, o fato de não podermos encontrar o “povo” em um boteco não significa que ele não existe. Dureza é dar-lhe um rosto, e as tentativas de fazê-lo resultam amiúde em caricaturas estética e ideologicamente patéticas, comuns no cinema brasileiro. E o erro está na pretensão de caracterizar essa entidade nebulosa, que não vemos a beber sua cachaça no balcão, como se ela fosse uniforme, e não assumida como um termo que traduz um universo vasto e rico, que não se limita aos clichês habituais – o que explica também, aliás, a imagem fácil das “elites”, que não é feita apenas de plutocratas bebendo scotch e fumando havanas.

Lisbela e o Prisioneiro, de Guel Arraes, e O Caminho das Nuvens, de Vicente Amorim, são mais dois filmes que, de maneiras diversas, põem em cena esse povo que desafia interpretações. O que os aproxima é a filiação a uma corrente, cada vez mais crescente no Brasil, dos road movies otimistas, que retratam de uma maneira terna o homem comum, aquele que sonha, individualmente e de forma mais complexa que a vista nos clichês, com uma vida melhor. Nessa linhagem se inserem, notadamente, o recente sucesso de público Deus é Brasileiro, de Cacá Diegues (que ecoa um pouco o seu Bye Bye Brasil, embora esse seja um pouco datado) e, principalmente, Central do Brasil, de Walter Salles, que, mal ou bem, renovou o gênero.

São filmes aparentados sim, mas, não custa frisar, trazem até nas diferenças que os separam (inclusive na qualidade) ganhos para o cinema brasileiro contra o dragão da maldade do esquematismo. Escorregam, ora mais, ora menos, um pouco para certo populismo demagógico e alguma mistificação. Em todos podem ser apontados defeitos, mas o que mais interessa dizer é que eles se destacam de outros tantos pelo respeito (o que não é pouca coisa) com o espectador, ao serem profissionais (escapando das fórmulas mais convenientes), e, principalmente, com o “povo” que querem retratar. Bem diferente – só para citar um exemplo – do recente O Homem do Ano, de José Henrique Fonseca, que, por meio da direção de arte, faz questão de ridicularizar, caricaturalmente, os bibelôs e o gosto da classe média suburbana – e, naturalmente, também os de certa “elite” má…

Dos dois lançamentos, Lisbela e o Prisioneiro, baseado na obra homônima de Osman Lins e já adaptada pelo mesmo Guel Arraes para o teatro e um especial de TV, se destaca. Seguindo a mesma receita de seu primeiro filme, O Auto da Compadecida, o diretor optou por privilegiar aquele “povo” safo, que se vira diante das dificuldades das vidas, nas situações mais prosaicas e engraçadas. Quem encarna desta vez o “João Grilo” de Ariano Suassuna de O Auto da Compadecida é Selton Mello, no papel de Leléu, um pilantra esperto, mas puro moralmente, que percorre pequenas cidades no Nordeste com seu carro-espetáculo, encenando peças populares, exibindo a Monga, vendendo tônicos fajutos e o que mais for necessário para conquistar as mulheres. Em um belíssimo momento do filme, já vencido pela paixão de Lisbela (Débora Falabella), diz que seu destino, desde que viu a passagem do dirigível alemão Zeppelin em sua minúscula cidade, era “sair pela estrada em busca do que é belo”.

Do lado oposto da rodovia, mais sério, O Caminho das Nuvens, baseado em fatos reais, conta a história de Romão (Wagner Moura), que, junto com a mulher e os cinco filhos, percorre 3,2 mil km – da Paraíba ao Rio de Janeiro – de bicicleta. Se a viagem de Leléu é em busca do belo, Romão, que se autodenomina um “cabra destinado”, toma a estrada atrás de lugar onde possa ganhar “mil reais”, que é o que considera suficiente para sustentar sua família. É aí, em algum ponto desses caminhos do fim do mundo, que os dois se cruzam, considerando-se destinados a alguma coisa que supere ou a banalidade ou o sofrimento a que estariam condenados. Herói, anti-herói ou, melhor, qualquer outra coisa, esse não é o “povo” choroso, vítima de um país cruel, injusto ou qualquer coisa parecida que frequentam os discursos populistas. Livrai-nos Deus se forem feitos ainda às lágrimas.

Devidamente descartado isso, abrem-se os espaços para a graça e para o lúdico, ainda que em contextos nitidamente difíceis. Isso já foi visto em Central do Brasil, na cena, por exemplo, da imensa procissão noturna nos cafundós do agreste, ou no ambiente festivo de Deus é Brasileiro. Em O Caminho das Nuvens, Vicente Amorim permite, com suprema gentileza, que esse povo pontue sua trajetória de um modo possível, mas não necessário. A mulher de Romão, Rose (Cláudia Abreu), se enfeita e se maquia para cantar, com genuína alegria, músicas de Roberto Carlos em cada cidade em que param, a fim de ganhar algum dinheiro, fazendo do próprio percurso a trilha sonora do filme.

Já na comédia Lisbela e o Prisioneiro, Guel Arraes lança mão de outras soluções. Seu roteiro estabelece um diálogo com o próprio cinema, num exercício de metalinguagem despretensioso, ao contrapor produções Z americanas, estereotipadas de propósito, com a vida e os sonhos de Lisbela. Mas sem deboche. O mesmo ocorre, de maneira complementar, com a música. Não há Roberto Carlos, mas há Caetano Veloso cantando (magnificamente) a ultrabrega Você não me Ensinou a te Esquecer, de Fernando Mendes, música que pode provocar urticárias em alguns (e que já ressuscita as intermináveis discussões sobre o repertório do cantor), mas nem de longe soa como bazófia.

Há também uma mescla de música regional, xote e forró. Entre elas, atenção especial para a música-tema, Lisbela, composta especialmente para o filme pelo mesmo Caetano Veloso e interpretada tanto por Los Hermanos quanto pelo Trio Forrozão. Na letra, talvez a chave da narrativa, do jogo auto-referencial de Arraes e do espírito generoso (atenção: não caridoso) desse tipo de filme: “Eu quero a sina do artista de cinema/ Eu quero a cena/ Onde eu possa brilhar/ Um brilho intenso, um desejo/ Eu quero um beijo, um beijo imenso/ Onde eu possa me afogar// Eu quero ser o matador das cinco estrelas/ Eu quero ser o Bruce Lee do Maranhão/ A Patativa do Norte, eu quero a sorte/ Eu quero a sorte do chofer de caminhão// Pra me danar por essa estrada mundo afora/ E ir embora sem sair do meu lugar (…)”.

E assim se reúne o caminhoneiro com o ator, o percurso com o destino, a realidade com o sonho. A tristeza com a alegria. No todo, tanto Lisbela e o Prisioneiro quanto O Caminho das Nuvens, sempre por caminhos diversos, oferecem não só temáticas, mas também leituras políticas e estéticas alternativas à oposição caduca entre o “engajado” e o “alienante”, entre o “entretenimento” e a “obra de arte”. É claro que nenhum deles, com suas falhas e seus exageros, é o sal da terra para o cinema nacional. Mas, seguindo aquele raciocínio de Eco, o fato de não se encontrar as soluções a perambular por aí não significa que elas não existam. E que não se possa continuar, estrada afora, a buscá-las.

BRAVO!, setembro de 2003
© Almir de Freitas