Como Pixote, filme sobre crianças jogadas à própria sorte, Cidade de Deus é um marco na abordagem da violência no país
Já se contam mais de 20 anos desde que Hector Babenco focalizou a brutalidade do mundo de crianças jogadas à própria sorte, com Pixote – A Lei do Mais Fraco (1981), para expor um retrato sem retoques da violência brasileira. A temática estava longe de ser nova, mas, por isso mesmo, o filme significava um salto no cinema brasileiro, dominado pelo policialesco de inspiração nacional-carnavalesca do Cinema Novo, ou, ainda, pela visão romântica da marginalidade, de estética nouvelle vague, de O Bandido da Luz Vermelha (1961), de Rogério Sganzerla. Da mesma forma, Cidade de Deus chega num momento em que parecia se cristalizar nas produções nacionais do gênero uma linguagem naturalista, de digestão tão fácil quanto “legítima” diante de um descontrole sem precedentes da insegurança nas grandes cidades. Não seria exagero dizer que Pixote e Cidade de Deus, cada um a seu tempo e com suas particularidades, se equivalem no potencial de ruptura. E é curioso como ambos se aproximam ainda mais ao se deter – de formas distintas – em um universo em que a infância existe apenas como um breve lapso de tempo.
Em Pixote, uma cena inesquecível é a do menino de rua interpretado por Fernando Ramos da Silva mamando como um bebê na prostituta Sueli (Marília Pêra). Havia nessa delicadeza devastadora, que escancarava uma maturidade cruel e forçada, algo que, na força da imagem – e essa é precisamente a maior virtude do cinema –, riscava do mapa qualquer traço de proselitismo ideológico ou maneirismo estético. Em Cidade de Deus, uma das sequências exemplares desse vigor que anula o discurso superficial é aquela em que duas crianças, encurraladas pela gangue que domina o tráfico, têm de escolher entre ser baleadas no pé ou na mão; em seguida, uma terceira – com os olhos vidrados e as mãos tremendo – se vê obrigada pelos mais velhos a escolher entre as duas qual terá que fuzilar à queima-roupa, como um teste. São situações emocionalmente opostas, mas a leitura é da mesma natureza: paga-se sempre um preço alto pela perda precoce da inocência.
Contudo, não é por acaso que a fragilidade exposta por Babenco em um meio de menores matadores se dilui no filme de Fernando Meirelles. Em boa parte isso se dá em razão do pessimismo do texto original de Paulo Lins e, por outro lado, porque o próprio país mudou, “amadureceu” também ele de um modo ainda mais cruel desde 1981. Nunca é demais lembrar que Fernando Ramos, que Babenco foi buscar numa favela de Diadema, na Grande São Paulo, para fazer o papel-título de seu filme, acabou sendo morto seis anos depois pela polícia, num caso que levantou suspeitas de execução. Quando a realidade se mostra mais dura que a melhor ficção, alguma coisa dolorosa se aprende. O destino de Fernando Ramos, que deu origem a um outro filme, Quem Matou Pixote? (1996), de José Joffily, não deixa de ser um símbolo apropriado para o que ocorreu nesse tempo – para o que sempre ocorre com o tempo: um misto de perdas irremediáveis e de ganhos eventuais, com a imposição de, quase sempre, novas e duras exigências. Objetivamente, o país ficou mais violento, atenuou análises mais conscienciosas, sepultou outras tantas ilusões.
Ao lado dessa constatação externa, a noção se aplica igualmente à própria narrativa de Cidade de Deus, uma vez que ela se assenta também nas transformações da favela e dos personagens entre duas épocas distintas – coincidentemente os anos 60 de O Bandido da Luz Vermelha e os 80 de Pixote. No filme de Meirelles, acompanhando o crescimento do narrador, Busca-Pé, as casinhas ordenadas erguidas pelo governo nos cafundós do Rio de Janeiro são engolidas pelas construções caóticas; o assalto cede sua primazia ao narcotráfico como principal negócio; e um certo amadorismo do “trio ternura” e seus revólveres dão lugar às gangues numerosas de armamento pesado. E é nesse período, diferenciado também pelo tom sépia da cor viva das imagens, que crescem também dois personagens cruciais: o menino Dadinho se transforma em Zé Pequeno, todo-poderoso da favela, dono de uma crueldade sem limites que contrasta com a personalidade do “bandido gente fina” Bené, seu amigo de infância e parceiro no crime.
A Meirelles cabe o mérito de ter sabido levar para o cinema essa noção de um tempo que se esvai rapidamente em direção à maioridade, com uma noção embutida, sim, de “degeneração”, mas sem, uma vez mais, resvalar para o mero discurso moralista. Há certamente uma moral aí, mas ela se distancia do simplismo ao abrir, por meio de um roteiro extremamente bem elaborado por Bráulio Mantovani, o arco de leituras que a história e os personagens permitem. Se de um lado está a questão social, a miséria e a exclusão, de outro está – por que não? – o indivíduo. Zé Pequeno é diferente de Bené, que por sua vez é diferente de Busca-Pé, pela simples razão de que são diferentes. Mesmo que teime em persistir uma sensação de que há algo neles, seja no que se chama de natureza ou, justamente, na trajetória de cada um da infância à vida adulta, que escapa ao espectador. Mas esse algo, como a questão social, não é mais que sugerido.
É outra boa notícia: ainda que evitando os sociologismos, Cidade de Deus também não cai no outro extremo, tentador, de psicologizar os personagens. Tanto quanto é possível em cinema, são vidas que ali se acompanham, não retalhos de conceitos. Zé Pequeno não é apenas mau (e ele é mau mesmo) porque nasceu miserável ou – como sugere a sequência em que se vê perdido e sozinho numa festa – só pensa nos “negócios” e é incapaz de se relacionar com as pessoas. Novamente, o contraste se dá com Bené, que, também miserável, faz amigos aos montes e, um dia, decide abandonar a favela, mudar para o interior com a mulher e “fumar maconha o dia inteiro”. O que se deduz daí? O que se queira: o filme não diz. Num outro caso, compreende-se por que Manoel Galinha, inicialmente cobrador de ônibus, é levado a ingressar numa gangue pela fatalidade de morar na Cidade de Deus. Mas restará uma indagação quando ele, numa sequência veloz de três assaltos, deixa de ser o sincero porta-voz do crime que dispensa a morte de “inocentes” para balear a sangue-frio um segurança de banco. Por quê? Não há resposta didática.
Talvez o maior segredo de Cidade de Deus seja esse investimento – tanto quanto é possível em cinema – na complexidade desses personagens, deixando mais uma sensação de perplexidade do que pretendendo passar uma lição de moral para o público de classe média. Por mais paradoxal que (ainda) possa parecer, é exatamente isso que dá ao filme um realismo mais contundente, sem que ele precise se amparar no acúmulo de obviedades e lugares-comuns sobre a violência. Apegando-se mais à verossimilhança da narrativa interna e ao impacto das imagens, supera em muito o que se tem feito recentemente nas produções do gênero, que só fazem reproduzir uma ladainha oca, vazia e, se pode ser pior, ruim como cinema. Pois, nessa abertura que Cidade de Deus dá, há espaço inclusive para o banal, em que há humor, alegria de criança, desejo adolescente por sexo, vislumbre de felicidade, amor – todas aquelas coisas sem as quais o ser humano não passa, em qualquer obra de arte, de um amontoado irritante de clichês. É aí então que, ainda que por um modo difuso, estabelece-se um diálogo entre filme e espectador, em que uma identificação de personagens de dois mundos tão radicalmente diferentes se faz possível.
Nesse ponto de Cidade de Deus, o tempo se passou, todos os meninos que moravam nas casinhas alinhadas se foram, como se foi um Brasil que, melhor ou pior, já existiu. Mas as crianças, como num círculo sem fim, se perpetuam, multiplicam-se como naquela já antiga música, Os Outros Românticos, de Caetano Veloso: “E o espírito era o sexo de Pixote então/ Na voz de algum cantor de rock alemão/ Com o ódio aos que mataram Pixote a mão/ Nutriam a rebeldia e a revolução/ E os trinta milhões de meninos abandonados do Brasil/ Com seus peitos crescendo, seus paus crescendo/ E os primeiros mênstruos/ Compunham as visões de seus vitrais”. E serão justamente esses pixotes sobreviventes que voltarão para recomeçar a história. A diferença com Babenco é que, em vez de agarrados ao seio de uma mãe postiça, Lins, Mantovani e Meirelles optaram por deixá-los na memória com uma arma na mão. O afeto de que necessitam, como mostrado naquele breve lapso de tempo há mais de 20 anos, só aparece de um modo mais duro em Cidade de Deus. Mas, olhando com cuidado, vislumbra-se um futuro que, depois de tão curta infância, oscila entre as necessidades mais comuns da vida e a morte trágica.
BRAVO!, setembro de 2002
© Almir de Freitas