“Gilgamesh (…) vagou pelos campos e pastos numa longa jornada em busca de Utnapishtim, a quem os deuses acolheram após o dilúvio e instalaram na terra de Dilmun, no jardim do sol”
De clássico em clássico, chegamos àquele que é considerado o mais antigo da humanidade, apontando nada menos que as origens e a própria fundação da cultura ocidental. Herdado dos sumérios, inventores da escrita, o poema assírio A Epopeia de Gilgamesh, datado do terceiro milênio antes de Cristo, antecede em pelo menos 1,5 mil anos os relatos homéricos da Ilíada e da Odisseia e mostra quanto as narrativas dos povos do Oriente Próximo contribuíram com as ciências, os mitos e as instituições que proliferam entre os povos que ocuparam a Mesopotâmia e a Palestina. E não surpreende que registros do Velho Testamento devem-se a esse desabrochar civilizatório.
Descobertas no século 19 por um jovem inglês que escavava em Nínive, as primeiras tábuas de argila (muitas foram localizadas e decifradas mais tarde) contavam a história do monarca Gilgamesh, que, reinando por 126 anos, foi o construtor das grandes muralhas de Uruk, cidade-Estado ao sul de Bagdá. Dois terços deus e um terço humano, sua tragédia é o conflito entre os desejos de uma linhagem, imortal, e da outra, sujeita às dores, às fraquezas e aos padecimentos dos mortais. Em episódios divididos como capítulos, Gilgamesh encontra seu parceiro de aventuras – o selvagem Enkidu –, com quem faz uma perigosa travessia na floresta em busca da sabedoria e da imortalidade, sempre sob os olhos dos deuses do panteão mesopotâmico.
Mas o que sempre chamou a atenção dos estudiosos – e dos leigos também – é o relato do Dilúvio, em quase tudo similar ao descrito no Gênesis. Em A Epopeia de Gilgamesh, o deus Enlil propõe às outras divindades em conselho o extermínio da raça humana. A razão? Barulho: “O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia”.
Mas um dos deuses, Ea, decide poupar Utnapishtim, com quem Gilgamesh se encontra em sua jornada. É o próprio quem relata a história: instruído pelo deus, constrói um barco e leva para ele “a semente de todas as criaturas vivas”. Sete dias depois, veio a chuva e, sete dias depois, cessou. Em meio ao mar infinito, o navio acabou encalhando numa montanha. Também sete dias depois, Utnapishtim soltou uma pomba, que, não encontrando lugar para voltar, retornou; depois, também sem sucesso, uma andorinha; e, por fim, um corvo, que encontrou terra.
A semelhança é evidente, mas não há consenso entre os historiadores se a história do Velho Testamento deriva diretamente da registrada em Gilgamesh. Uma hipótese é que o relato já existia séculos antes, pulverizado em uma dúzia de povos esquecidos. Mas há outra diferença, crucial: se em Gilgamesh Utnapishtim só consegue escapar à catástrofe por causa de uma desavença entre os deuses, no Gênesis a salvação se deve a uma questão ética – basilar do monoteísmo que forjou, numa outra e decisiva etapa, a civilização ocidental que conhecemos.
Mas do nada não se cria nada, e somos todos devedores daquele tempo indefinido entre a lenda e a história, entre a história oral e a escrita, de uma época em que o homem mal havia saído das cavernas. Mais clássico que isso, impossível.
Primeira Leitura, setembro de 2004
© Almir de Freitas