“Um Dom Quixote pode desterrar do mundo as loucuras dos cavaleiros andantes; um Fanfarrão Minésio pode também corrigir a desordem de um governador despótico“
Como se fora um Voltaire embrenhado nas Minas Gerais no século 18, Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) possuía aquele tipo de ilustração, ainda hoje rara, que permite conciliar a elegância, a seriedade e a pilhéria. Poeta árcade, autodenominado Dirceu nos versos que escrevia a Marília, foi um dos conspiradores da Inconfidência Mineira. Movimento que, como se sabe, começou em 1789 com a ameaça da corte portuguesa de cobrar dos mineiros uma sobretaxa de impostos – a derrama – e terminou em 1792 com a execução do alferes Tiradentes e o degredo de outros tantos.
Antes, porém, desse fracasso espetacular, Gonzaga já mostrava sua indisposição com as eventuais arbitrariedades da corte, embora ele mesmo – designado em 1782 para ser ouvidor e procurador dos “defuntos e ausentes” na comarca de Vila Rica – pertencesse aos seus quadros. Foi assim que, movido pelo ideário iluminista e claramente inspirado nas Cartas Persas, de Montesquieu, escreveu as Cartas Chilenas. Em 13 cartas, redigidas em decassílabos brancos, um certo Critilo (Gonzaga) relata ao amigo Doroteu (provavelmente Cláudio Manoel da Costa) os desmandos de um tal Fanfarrão Minésio, general do Chile, que vinha a ser o então governador da capitania de Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses.
Nas cartas, Cunha Meneses não escapa da caricatura, recurso típico dos inspiradores franceses de Gonzaga (“Na cabeça vazia se atravessa/ Um chapéu desmarcado, nem sei como/ Sustenta o pobre só do laço o peso?”), nem de ter seu caráter ridicularizado (“Mal se põe nas igrejas, de joelhos,/ Abre os braços em cruz, a terra beija,/ Entorta o seu pescoço, fecha os olhos,/ Faz que chora, suspira, fere o peito,/ E executa outras muitas macaquices”).
Contudo, a sátira serve ao propósito de denunciar, simplesmente, o descumprimento das leis. Pois Gonzaga, afinal, era juiz. Membro de fato da elite intelectual de Vila Rica, valia-se de seu repertório para acusar aquilo que lhe era inviolável: “(…) Mas, amigo,/ De que serve fazer-se o que as leis mandam/ Na terra, que governa um bruto chefe,/ Que não tem outra lei mais que a vontade?”.
É evidente que, na pena de Gonzaga, os deputados são “retos”, as leis do reino são “sábias” e os juízes são “zelosos”. Mas em que medida qualquer relativização desses predicativos invalida uma justa investida contra o autoritarismo de um governante que se mostra disposto a passar por cima da mínima ordem para fazer valer sua vontade? Gonzaga não questiona, nesse momento, a coroa – ao contrário, milita para ver suas regras aplicadas corretamente. Sempre se quis mais dos inconfidentes, mas isso não é suficiente?
Sempre se apontaram, com dedo em riste, interesses escusos nesses iluministas adentrados nas Minas Gerais, como se isso fosse algo surpreendente. Não surpreende mesmo é que, diante disso, o episódio da Inconfidência ainda seja cercado de toda sorte de mistificações. Em vez de compreenderem-na em sua inteireza, abarcando a complexidade dos seus agentes, os entusiastas da revolta total se aproximam, quase sempre, dos métodos autoritários daqueles que antes diziam combater.
Primeira Leitura, julho de 2003
© Almir de Freitas