“(…) eu penso, logo existo, era [uma verdade] tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo (…)”
Em artigo escrito nos anos 50, um irritado Roland Barthes qualificou de “velho mito obscurantista” o chamado “bom senso” – noção à qual, acusava, os críticos literários e teatrais recorriam para se escusar de maiores filosofias. É curioso: três séculos antes, era exatamente uma avaliação positiva sobre o “bom senso” que guiava a obra que é considerada basilar do racionalismo e fundadora do pensamento moderno.
Logo no início do Discurso do Método, René Descartes (1596-1650) escreveu: “Inexiste no mundo coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem”.
Não há no texto de Barthes nenhuma referência à filosofia de seu patrício ilustre, mas não é impossível que ela estivesse ausente do seu espírito incendiário. Talvez não diretamente contra aquela que, matemática e rigorosamente, solapou de fato a escolástica medieval e renascentista, mas sim contra os seus resíduos mal digeridos, perpetuados em forma de “mitos” por sujeitos orgulhosos de sua ignorância, os peitos estufados de “bom senso”.
Embora seja um fenômeno comum – e desanimador – na história das ideias, a vulgarização do Discurso do Método se destaca, apesar de sua simplicidade. Boa parte disso se deve ao fato de o livro estar cheio de ambiguidades, ironias e recados indiretos contra os doutores da igreja. As várias restrições pessoais de Descartes contra o “aprendizado das línguas” e as “leituras dos livros antigos, com suas histórias e suas fábulas” eram, naturalmente, contra o saber tal e qual as universidades disseminavam. Se isso não está mais claro é porque, vale lembrar, aqueles sempre tinham a seu favor o recurso de mandar queimar bem lhes aprouvesse.
E, no entanto, o Discurso do Método não é só um libelo semiclandestino. Descartes efetivamente propõe um método, que faz da dúvida quase absoluta em relação a tudo – dos livros lidos aos povos que conheceu em seus nove anos de viagens – o caminho para o conhecimento da Verdade. Mas como escapar do beco sem saída de um mundo construído sobre um punhado de sentenças incertas? Na Quarta Parte, o filósofo enuncia sua chave, que logo ficou famosa: “cogito, ergo sum”, penso, logo existo – eis aí uma afirmação cuja refutação o “bom senso” não admite. A partir dessa verdade, põe para funcionar uma lógica poderosa que, ao fim, “prova” a existência da alma e, nada menos, a de Deus. Uma existência que, ao mesmo tempo, “prova” que todos os indivíduos são dotados, por imanência, de “razão” ou do “bom senso” que o levou – cartesianamente, diríamos – ao início de tudo.
Claro está que se fala de um “bom senso” diverso daquele dos idiotas de Barthes. Além do mais, Descartes, astutamente, se vale dos mesmos instrumentos teóricos que critica: não joga a escolástica fora, mas a usa em favor de um conhecimento que extrapola as paredes das instituições monásticas e, por consequência, dos modelos de uma civilização. Nesse sentido – embora ele negue enfaticamente várias vezes –, faz política. Sobre sua filosofia se assentariam os novos tempos, com seus novos pensadores e (que se há de fazer?) seus novos obscurantistas.
Primeira Leitura, fevereiro de 2003
© Almir de Freitas