“A obstinação e a convicção exagerada são a prova mais evidente da estupidez. Haverá algo mais afirmativo, resoluto, desdenhoso, contemplativo, grave e sério do que um burro?”
Qualquer pessoa familiarizada com os livros conhece o prazer proporcionado pela leitura de um bom texto ensaístico. É quando se tem a impressão de vislumbrar a grandeza do mundo no detalhe, quando se suspeita que a venerável sabedoria pode ser encontrada na clareza de uma sentença bem formulada. Há algo de ilusório nessa percepção, é certo, mas, como toda sensação recorrente, ela possui um fundo de verdade. Como na poesia e prosa de ficção, o ensaio tem a capacidade de deixar entrever, na sua enunciação cristalina, um conhecimento, difuso mas marcante, que nenhuma filosofia poderia transmitir fora de um círculo de iniciados. O que não é briga pequena, e disso bem o sabia o francês Michel de Montaigne (1533-1592), que, com sua coletânea de textos intitulada Ensaios, praticamente inventou o gênero.
Publicada em 1580, a obra alcançou grande popularidade durante o Renascimento, mas custou um tanto para ser aceita entre os pensadores de sua época, acostumados que estavam aos axiomas e dogmas indecifráveis – fossem eles canônicos ou filosóficos. Na pequena introdução de Ensaios, Montaigne, que já tinha se afastado dos negócios mundanos e se recolhido em sua propriedade, parece agitar a bandeira branca aos adversários: “Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será talvez razão suficiente para que não empregues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima importância”.
Irônica ou não, a ressalva é sintomática: a seu modo, deixava claro que se tratava de uma obra compilada a partir da observação empírica, fruto de um conhecimento assistemático, despretensioso e por vezes bem-humorado, que, pela própria soma dessas características, podia abarcar quase tudo. Ao longo de centenas de páginas, Montaigne discorre livremente sobre uma gama de assuntos que vai de Sêneca aos canibais do Brasil, incluindo – entre uma e outra consideração sobre a virtude e a moderação – o sono, os cavalos de guerra, a embriaguez, os cheiros, os coxos, os correios e até mesmo os polegares.
Engana-se, contudo, quem se deixa levar pela modéstia expressa pelo autor no prefácio ou pela graça dos temas. Diferentemente das peças satíricas que circulavam pela Europa, aos textos de Montaigne não faltavam reflexão e ponderação na análise de fatos comuns, numa escrita que se dirigia também ao homem comum. Com a forma do ensaio, Montaigne inventava também uma inteligência que ia além daquela conhecida até então, que exigia uma disciplina tão ferrenha que, não raro, engendrava preconceitos e dogmatismos, tolhendo a própria liberdade de pensar.
Não é surpreendente, portanto, que Ensaios tenha encontrado tanta resistência. O desassombro de Montaigne – até no erro – não tinha como se encaixar, no século 16, no universo dos honestos pensadores sistemáticos. Que dizer então dos desonestos, que costumam fazer do hermetismo um álibi para a pura pilantragem? Sobre eles, fala o próprio Montaigne no ensaio Pedantismo: “São os únicos que não somente não melhoram a matéria-prima que se lhes confiou, como fazem o carpinteiro e o pedreiro, mas a estragam e ainda cobram por tê-la estragado”.
Claro e cristalino.
Primeira Leitura, março de 2003
© Almir de Freitas