Lira Neto fala sobre Uma História do Samba — As Origens, primeiro de uma série de três volumes sobre o gênero que se tornou indissociável da maior festa do país
“O samba é pai do prazer, o samba é filho da dor”. Os versos de Caetano Veloso para a música Desde que o Samba é Samba servem não só de epígrafe para Uma História do Samba — As Origens (Companhia das Letras, 376 págs., R$ 64,90), mas também de pista do que o leitor vai encontrar adiante. Primeiro de uma série de três volumes, o livro é um mergulho de Lira Neto na trajetória no ritmo que, tornado urbano no início século 20, se tornou indissociável da maior festa do país, o Carnaval.
Nesse primeiro volume, Lira Neto batucou sobre o período que vai da formação do samba urbano, no Rio de Janeiro do fim do século 19, ao início década de 30, quando surgiram os primeiros desfiles da escolas. Dali em diante, a dobradinha samba-carnaval (entre a dor e o prazer, a agonia e a festa) iria viver sua contradição fundamental: ritmo popular, seria alçado ao mainstream cultural pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, empenhado em criar uma suposta “identidade nacional”.
É uma história dividida entre o caráter essencialmente marginal do samba, de um lado, e a espetacularização e domesticação pelo mercado, de outro. “Essa contradição é que é fascinante. O samba se reinventa. Agoniza, mas não morre”, diz Lira Neto na entrevista que se segue. O autor fala também das histórias desse primeiro período e seus personagens (muitos deles esquecidos), a antiga relação conflituosa do Carnaval de rua com o poder público e sobre a recente polêmica em torno dos blocos que decidiram vetar marchinhas famosas do passado, consideradas misóginas e racistas.
Quanto tempo de pesquisa esse primeiro volume consumiu?
Iniciei a pesquisa sobre o samba, de forma sistemática, desde o instante em que entreguei ao meu editor os originais do terceiro volume de Getúlio, ou seja, ainda no primeiro semestre de 2014. Enquanto pesquisava e escrevia a biografia do ex-presidente, mergulhava fundo no ambiente político, econômico, social e cultural de uma época na qual o samba, saído de um estágio inicial de marginalidade, não por coincidência passava a ser incorporado ao discurso nacionalista do varguismo como um dos pretensos símbolos da “identidade nacional”. As duas pesquisas possuem, assim, pontos de confluência, e acabaram por se autoalimentarem.
A que fontes você recorreu para recriar as histórias e seus personagens?
Além da vasta bibliografia pré-existente sobre o tema, garimpei informações em jornais de época, em acervos de pesquisadores particulares e, também, em arquivos policiais e jurídicos. Este primeiro volume, particularmente, aborda uma história até hoje narrada com ênfase no lastro da tradição oral, a partir de informações que se repetem de fonte para fonte, de livro em livro, o que acabou por cristalizar uma vasta e bela mitologia a respeito dos pioneiros do samba. Contudo, nem sempre essa narrativa idealizada, autocongratulatória, produtora de lendas e versões edulcoradas, encontra respaldo na documentação disponível. Em certa medida, o livro tenta mostrar exatamente isso.
Dá para precisar como, quando e onde nasceu exatamente o samba urbano?
Esse é um dos territórios mais escorregadios em torno do tema. O samba, como toda manifestação da cultura popular, não tem certidão de nascimento, não tem um criador, um idealizador. Ele é uma obra essencialmente coletiva, produzida ao longo de gerações, exposta às mais variadas assimilações, influências, amoldagens, reelaborações, influxos e apropriações. Daí preferi cravar, no subtítulo, “As origens”, e não “A origem”. Não existe isso, como querem alguns, de o fulano inventor do surdo, o sicrano criador da expressão “escola de samba”, o beltrano primeiro sambista.
Das histórias que você conta, qual a sua favorita?
São tantas que ficaria difícil escolher apenas uma. Entretanto, há alguns personagens que me fascinam de modo especial, muitos deles quase relegados ao esquecimento ou citados apenas em notas de pé de página na bibliografia especializada. É o caso de Hilário Jovino Ferreira, o grande Lalu de Ouro, um dos muitos migrantes que levaram o samba rural da Bahia para o Rio de Janeiro. Assim como o alufá Zé Espinguela ou o grande Caninha, de quem pouca gente, infelizmente, lembra hoje.
O Carnaval hoje é mais revolucionário ou mais domesticado pelo mercado?
O samba, assim como o Carnaval, precisou lançar mão de alguns mecanismos de sobrevivência, de certas estratégias de negociação, para ser alçado de uma condição inicial de marginalidade para a posterior consagração como “símbolo máximo da nacionalidade”. Nesse processo, amoldou-se às circunstâncias, às regras do mercado fonográfico, às contingências e aos ditames da então nascente indústria do entretenimento. Para alguns, o samba e o Carnaval são vistos como emblemas de resistência cultural. Para outros, ao contrário, o samba e o Carnaval foram vítimas de um processo de gradativa desafricanização, de domesticação recorrente, de branqueamento progressivo. Na verdade, as duas interpretações são parciais, insuficientes para dar conta do fenômeno. Uma e outra são pertinentes, quando vistas em conjunto. O samba ainda guarda muito de sua potência criadora, embora tenha feito concessões às necessidades da própria sobrevivência. Essa contradição é que é fascinante. O samba se reinventa. Agoniza, mas não morre. Querer que qualquer manifestação cultural permaneça “autêntica”, imóvel no tempo, é condená-la à folclorização. E o folclore é a morte da potência criadora e inventiva da cultura popular.
A relação entre Carnaval de rua e poder público parece sempre ter sido conflituosa. Como você vê as regras que as prefeituras estabelecem para os blocos de rua nos últimos anos?
Desde que o samba é samba, é assim. Compreendo a perspectiva de quem, investido de poder político, queira impor regras e limites à folia. Mas os blocos de rua ganharam força renovada justamente como uma resposta natural e espontânea à mercantilização e espetacularização excessivas do Carnaval. O problema é que esses mesmos blocos começam a se deixar enredar pelos mesmos mecanismos mercantis e de consumo que buscaram neutralizar, normatizar e higienizar os grandes desfiles no sambódromo. Estão virando uma indústria. Representam o deus do comércio, Mercúrio, disfarçado de Dionísio.
O que você pensa da proibição de marchinhas politicamente incorretas do passado em alguns blocos de rua?
Além da repressão policial, sambistas e carnavalescos são alvos históricos, desde a época das políticas higienistas postas em ação no começo do século 20, de outra grande força repressiva: o moralismo. Por princípio, sou contrário a qualquer tipo de proibição, de interdição cultural. Peguemos, por exemplo, a música de grandes bambas como Sinhô, Caninha, Ismael Silva. Em grande parte da obra desses compositores, prevalecia um tom machista, misógino. Vamos deixar de ouvi-los?
O que o samba e o Carnaval dizem do Brasil?
Costuma-se dizer que o samba e o Carnaval são o grande símbolo da “identidade brasileira”. Pois detesto o termo “identidade”, particularmente quando aplicado nesse sentido específico. O conceito de identidade é autoritário, trata-se do triunfo do estereótipo, pois tenta unificar, sob um único conceito, realidades plurais, caleidoscópicas, mestiças. Como estabelecer o que venha a ser “essencialmente brasileiro”, o que é “genuinamente nacional”, em um país tão vasto e tão diverso culturalmente, como o nosso? O samba e o carnaval são brasileiros na mesma medida em que o são o frevo, o bumba-meu-boi, o maracatu, o carimbó, o forró, e por aí afora.
Bravo!, fevereiro de 2017
© Almir de Freitas