A sociedade do medo

O filósofo Vladimir Safatle afirma que o medo se transformou em um elemento de coesão de uma sociedade refém de um discurso de crise permanente

Foto: Marcos Santos/USP Imagens/Divulgação

Professor livre-docente do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, Vladimir Safatle defende no livro O Circuito dos Afetos (Autêntica, 2016) que as sociedades se pautam não apenas por relações de troca de riquezas, mas são também sistemas de “afetos” políticos. Na vida contemporânea, ele assinala, o afeto hegemônico é o medo – medo que se transformou no elemento de coesão de uma sociedade refém de um discurso de crise permanente, em que essa crise virou ela mesma “uma forma de governo.” Na entrevista que se segue, concedida por Safatle em sua sala na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP, ele fala sobre esse estado de coisas, violência, amor e felicidade, além do discurso “problemático” do humanismo. E ressalta, por fim, o papel fundamental da obra de arte nas potencialidades de transformação social, ao modificar nossa sensibilidade. “Toda verdadeira obra de arte é a instauração de uma nova gramática”, afirma.

Como se caracteriza o circuito dos afetos da sociedade contemporânea?

A ideia central é de que as sociedades não são só circuitos de bens e de riquezas, não são só baseadas em sistemas de trocas – sejam elas trocas de objetos, trocas econômicas, trocas matrimoniais. Elas são também sistemas de circuitos de afetos, ou seja, são modos de circulação e produção de afetos. Isso significa que, para entendermos o que uma sociedade é capaz de fazer ou não, como ela constitui laços sociais e constrói sua coesão, é necessário saber quais são os afetos hegemônicos que produzem esses contatos entre corpos, esses contatos entre sujeitos. Essa questão nos leva a perguntar, primeiro, se há um afeto hegemônico na vida contemporânea; e, segundo, qual seria esse afeto.

E qual é?

Não é muito difícil encontrar uma resposta a essa pergunta se levarmos em conta a maneira como o medo se transformou num afeto político central das nossas vidas. Não só por questões concretas, mas também como o resultado de um certo modelo de gestão social: gere-se o medo como elemento fundamental de construção de unidade, de coesão e também de paralisia da maneira como essa sociedade prefere ficar na situação em que está do que tentar utilizar sua imaginação para procurar novos caminhos, novos modos de existência.

E o desamparo?

Eu utilizei o desamparo como um contraponto a isso, na verdade, quase como uma espécie de manobra inesperada. Porque, a princípio, pode parecer que nós vivemos em uma sociedade na qual o desamparo é um elemento central, haja vista a maneira como as pessoas vão constituindo suas relações de autoridade a partir de demandas de amparo. Os americanos chamam isso de “care”, política do “care”.  Uma das coisas interessantes da psicanálise freudiana, e que tem um forte impacto nas nossas reflexões sociais, é a ideia muito própria de Freud de que o desamparo não é algo que se cura, nem é algo que se trata  – o desamparo é algo que se afirma. Ou seja, esse desamparo não é, na verdade, algo contra o qual nós devemos lutar, mas uma condição fundamental para nossa liberdade. Há uma relação muito importante entre liberdade e desamparo, e acho que ela tende a desaparecer um pouco dentro das nossas formas atuais de vida.

No seu Quando as Ruas Queimam: Manifesto pela Emergência, você diz que nossa época vai passar para a história como o momento em que a crise virou uma forma de governo. Você está falando do medo que é gerado pela crise?

Sim, como efeito. É importante entender como o discurso da crise se transformou num modo de gestão social. As crises vêm para não passar. Por exemplo, nós vivemos numa crise global há oito anos. Isso do lado socioeconômico. No que diz respeito aos problemas de segurança, vivemos uma situação de emergência há quinze anos, desde 2001. Ou seja, são situações nas quais vários direitos vão sendo flexibilizados, em que os governos vão tendo a possibilidade de intervir na vida privada dos seus cidadãos em nome de sua própria segurança. É muito mais fácil você gerir uma sociedade em crise. Então, a sociedade em crise é uma sociedade, primeiro, amedrontada; segundo, é uma sociedade aberta a toda forma de intervenção do poder soberano, mesmo aqueles que quebram as regras, quebram as normas constitucionais. Como estamos em uma situação excepcional, essas quebras começam a se virar coisa normal. Esses discursos a respeito da luta contra a crise são muito claros no sentido de impedir a sociedade de reagir. Não se reage porque “a situação é de crise”.

E aí entra o medo.

Exatamente. Aí entra um pouco essa maneira de transformar o medo num elemento fundamental da gestão social. Ou seja, o medo produzido, em larga medida, potencializado, administrado, gerenciado. É o gerenciamento do medo como único forma de construir coesão hoje em dia. Nós podemos construir coesão a partir da partilha de ideias; só que, quando a sociedade chega no ponto em que ela desconfia dos ideais que lhe foram apresentados como consensuais, quando desconfia das gramáticas sociais que são responsáveis pela mediação dos conflitos, não resta outra coisa a não ser um tipo de coesão negativa. Não coesão por algo que todos afirmam, mas uma coesão através de algo que todos negam.

Quando você fala da gestão da crise, quem são os agentes? O poder constituído do Estado, os agentes financeiros, o corpo social?

De fato, o discurso da maneira como eu estava colocando pode dar um pouco a impressão de que há uma espécie de grande sujeito por trás. Eu diria que o que acontece é: nós partilhamos de um modo de existência que, por não conseguir realizar as suas próprias promessas, e também por impedir uma abertura em direção a outros modos de existência, começa a funcionar numa chave de conservação. É importante falar de modos de existência porque isso tira um pouco a figura do sujeito que delibera. Então temos, sei lá, o poder do Estado, a burocracia que controla o poder do Estado, o capital financeiro. É inegável que haja de fato projetos de grupos nos modos de gestão social, mas para além disso há uma coisa muito mais brutal: uma forma de racionalidade que se transformou para nós em um elemento quase natural, que faz com que todos comecem a pensar dessa maneira. Essa forma de racionalidade, que acaba operando esses processos de dominação, deixa uma situação mais complexa. Não se trata simplesmente de subverter o poder, mas de pensar de outra maneira, o que é muito mais complicado do que pode parecer.

Quais são os instrumentos de que dispomos pra romper com essa racionalidade, com esse circuito baseado no medo? O que fazer?

Tenho duas colocações a fazer. A primeira é: muitos acreditam que a melhor maneira de se contrapor a circuitos de afetos vinculados ao medo seja constituir outros circuitos vinculados aos afetos que seriam o oposto ao medo – por exemplo, a esperança. Só que aí há uma reflexão muito interessante, de toda uma tradição filosófica, de insistir que o medo e a esperança não são afetos contraditórios – são complementares. O que é o medo a não ser a expectativa de um mal que pode ocorrer? O que é a esperança a não ser a expectativa de um bem que pode ocorrer? Quem tem a expectativa de que um mal ocorra, também espera que esse mal não ocorra. Da mesma maneira, quem tem a expectativa de que um bem ocorra, teme que esse bem não ocorra. Então, a reversão contínua de um pólo a outro, da esperança ao medo, é uma constante, porque são dois tipos de afetos ligados a um mesmo modo de experiência temporal. São afetos ligados à projeção de um horizonte de expectativas. Nesse sentido, toda forma de pensar o tempo de maneira simétrica vai produzir resultados simétricos. Então, um outro afeto seria necessariamente um afeto que teria uma outra relação com a ideia de acontecimento.

Não temporal.

Não essa temporal, projetiva. Aí tem uma segunda questão, que é a natureza de perguntas como O que fazer? Eu não nego que sempre fiquei muito impressionado com esse tipo de questão. Não pela questão em si, mas pelo que a motiva, quer dizer, que posição é essa nossa que parece natural perguntemos a outra pessoa o que fazer. Ou seja, a naturalização de uma situação de impotência nos leva a fazer esse tipo de questão, sendo que a questão interessante é: o que aconteceu com nossa imaginação para que seja natural pra nós perguntarmos, agora, o que fazer? O que aconteceu com nossa imaginação política, com nossa imaginação social? Que tipo de receio temos a respeito daquilo que não conseguimos controlar? Como, por exemplo, a ordem dos acontecimentos. Será que toda a nossa questão não está exatamente aí, ou seja, quem pergunta O que fazer? pergunta na verdade O que esperar?. Talvez eu me perguntasse não o que fazer, mas Como eu devo ser?. Uma coisa é a normatividade do tipo de ação que eu preciso ter, outra é o tipo de sujeito que precisa emergir para que a gente tenha capacidade, então, de se deparar com aquilo que nem eu nem você pode prever ou controlar.

Pensando na transformação da sociedade, a violência tem algum papel que precisa ser pensado?

Nenhuma transformação é feita sem violência. E uma sociedade doente é aquela que só consegue entender a violência de uma forma – como um impulso de destruição, como uma vontade de dominação. Uma sociedade que só conjuga dessa maneira, que só conhece essa gramática, tem problemas em relação à força, à potência. E força não é necessariamente algo ligado a um impulso de dominação. Força é ligado a um exercício também, ao exercício da existência de algo. Quando existe, esse algo impõe uma força. Para mim é muito sintomático termos perdido um pouco a capacidade de perceber o quão violento pode ser um poema. Diderot falava, por exemplo, n’O Sobrinho de Rameau, sobre a música, a mais violenta das artes. Porque ela nos invade, mesmo quando você não quer. Monteverdi falava da música como a tirania da alma. É claro que você pode dizer: ah, mas você está sendo diversionista trazendo movimentos da estética quando você está falando sobre outro campo, do campos das relações sociais.

E como seria nas relações sociais?

Relações sociais sempre serão relações de força. E isso está longe de ser um problema. Nós nunca tivemos um problema com a força, nós temos um problema com a dominação. Há uma força vinculada à passividade também. Uma força vinculada ao deixar acontecer. Essa segurança de quem se coloca diante daquilo que, de uma maneira ou de outra, não é resultado mero e simples da sua intencionalidade. Ou essa segurança de quem se abre para o que te é Outro, no sentido forte do termo. Tudo isso configura não só as relações pessoais, mas também as relações sociais, no sentido mais amplo do termo. A sociedade que se vê como um corpo doente, à procura de sistemas de defesa contra aquilo que pode retirá-la da sua tradição, da sua identidade, das suas fronteiras, do seu limite, é uma sociedade que, em larga medida, é incapaz de lidar com uma violência que é um elemento contínuo no processo de autocriação.

E o que é tido como o oposto da violência, o amor? Que papel tem o amor nas transformações?

Essa é uma questão singular, eu diria, porque um problema interessante é: do que se está falando quando a gente fala de amor? Porque não é claro que estamos falando do mesmo tipo de fenômeno. E essa é uma bela questão porque nossas sociedades sabem do caráter transformador das experiências amorosas. Isso é uma conquista social desde o século 19. Só que há um embate sobre o que amor realmente significa, porque há uma ideia de amor quase contratual que muitas vezes se vê, uma espécie de “estar confirmado no outro”. O outro como aquele que me confirma: que me confirma nos meus interesses, que me confirma nos meus atributos, que me confirma nos meus predicados. Então com ele é possível passar quase uma espécie de contrato, mas um contrato marcado por uma certa compatibilidade, por uma certa simetria: eu tenho esses interesses e atributos, eu procuro que eles sejam confirmados e eu confirmo alguns dos seus interesses e atributos…. É quase uma relação comercial bem-sucedida. É quase uma relação na qual eu dou aquilo que eu recebo.

É uma relação mercantil.

Tem uma lógica mercantil. Então, talvez uma das questões mais interessantes que a psicanálise nos trouxe a respeito desse problema é como as relações afetivas não são relações que nos confirmam – são relações que nos despossuem. São relações que nos despossuem das nossas narrativas que até então funcionaram, nos obrigam a nos narrar de outra forma. É uma modalidade de experiência na qual essa compatibilidade mercantil entra em colapso, na qual sempre se dá demais. Mas não porque nós sejamos tontos nas relações afetivas, mas porque elas são marcadas por uma certa desmedida, ou seja, desmedida daquilo que desconhece medida, que não saberia o que fazer com uma medida. Nesse sentido, seria interessante perguntarmos até que ponto somos capazes de lidar com experiências dessa natureza, se não quisermos construir uma espécie de relação segura no interior de um processo no qual a insegurança é um elemento produtivo.

O que caracteriza o fascismo e a democracia hoje?

Adorno tem um belíssimo texto que chama A Teoria Freudiana e o Padrão da Propaganda Fascista, em que ele insiste que, se quisermos entender o fascismo, temos de entender que as pessoas agiam sem crença. Na verdade, elas não acreditavam na ideologia fascista, toda ela construída como uma verdadeira bricabraque. Elas performavam sua crença, agiam como se estivessem acreditando, e isso permitia que agissem sem engajamento efetivo. E essa é a pior das ações, é a mais implacável, porque é imune a autocorreções, não se autocorrige. Ela é imune a qualquer tipo de crítica, porque já é constituída dentro de um tipo de lógica na qual se diz: “Não, mas eu sei que isso não é exatamente assim. Eu sei que não é bem desta forma, mas é importante dizer desta maneira porque só assim que o outro vai acreditar e vai agir da mesma maneira”. Então é sempre um sujeito, um outro, que crê no meu lugar… Lévi-Strauss descreve isso num texto muito sui generis chamado O Suplício do Papai Noel. Ele fala que essa figura bisonha do Papai Noel é uma figura da crença que é externalizada. As pessoas agem, na verdade, esperando que as crianças também acreditem; mas, agindo como se de fato acreditassem nisso, perpetuam o modelo, digamos assim, de reprodução social e reprodução material da vida.

E isso se aplica à democracia?

A questão muito preocupante é que, de fato, nossas democracias são cada vez mais marcadas por esse modelo de crença desprovida de crença. Todos nós conhecemos muito bem os limites da nossa democracia, os defeitos do nosso sistema de representação, mas acreditamos nele, mesmo sabendo que o sistema está longe de ser o ideal, mas é o único possível. Então esse modelo, que parece um modelo desencantado, de maturidade desencantada (para alguns soa assim), para mim é o mais perigoso. Porque é o modelo em que se naturalizam processos em desagregação e, quando se está em processo de desagregação, é preciso agir com muito mais força, senão eles perdem completamente a sua dinâmica. Porque não há convicção nenhuma por trás, tem só uma engrenagem e um medo de que a engrenagem pare. E se ela parar, vai ser muito pior. Então, alimenta-se um tipo de coesão que é baseada basicamente na ideia de que você não se engaja, você simplesmente fala: “Sim, mas se a engrenagem parar, aí sim a gente vai ter um problema.”

Voltamos à questão da crise e do medo.

Exatamente. E quais são as consequências? Você gerencia a sociedade pelo medo, bloqueia a imaginação social de toda as pessoas, impede que elas consigam acreditar nelas mesmas para que possam desenvolver alternativas. Você melancoliza a sociedade. É uma sociedade melancólica. E as sociedades melancólicas são as mais violentas.

É possível dizer que a felicidade, durante um bom tempo do século 20 pelo menos, foi uma força do individualismo?

Se voltarmos à Grécia, Aristóteles, em sua Ética, coloca a felicidade como um horizonte fundamental da sua moral. Por que ele pode fazer isso, por que ele acha que os indivíduos devem agir a partir das suas demandas individuais de felicidade? Ou por que ele compreende a felicidade como uma condição social? Ou seja, a felicidade é uma adequação dessas minhas virtudes e as virtudes que a pólis exige. Nesse sentido, não é possível uma felicidade individual que não seja ao mesmo tempo uma felicidade social, ou seja, uma compreensão de que a sociedade alcança a sua excelência.

E isso mudou?

Kant já não acredita mais que a felicidade deva aparecer como horizonte da moral. Acha, ao contrário, que isso é um problema, porque se a pessoa age moralmente procurando a felicidade, então, não age por amor à lei moral, age por interesse de alcançar alguma coisa que se chama felicidade. Quer dizer: é uma ação condicionada, não incondicional. Essa reflexão tem um contexto histórico muito evidente. O que acontece entre um e outro, entre Aristóteles e Kant? Acontece muita coisa, é verdade. Mas uma das coisas é: há a emergência da ideia de indivíduo. E é muito interessante como a ética kantiana é uma ética que desconfia do indivíduo, nesse sentido por boas razões. Ele diz que a felicidade é marcada por uma comparação: eu sei quando eu estou feliz olhando os outros. Ou seja, a felicidade aumenta ou diminui a partir da comparação. Daí porque ele vai insistir: é necessário agir sem levar em conta o problema da felicidade. Há algo de inteligente nesse tipo de colocação, a gente deveria ser um pouco mais sensível a ela. Quer dizer, entender como de uma certa maneira a felicidade há muito tempo já se transformou numa espécie de lógica do impossível.

Por quê?

Uma lógica do impossível porque, se vivemos em um tipo de modelo social marcado por uma sociedade de indivíduos, é impossível que os indivíduos sejam felizes. O indivíduo é ao contrário. Pense como os indivíduos aparecem na filosofia… vamos pensar em Hobbes, por exemplo. O que temos é um guerra de todos contra todos, em que, de certa maneira, aprendemos a desejar olhando o que o outro deseja. Entramos aí em uma relação rapidamente concorrencial, ou uma relação belicista. Uma situação na qual é necessário um poder pra mediar os conflitos. E a minha relação com você sempre vai ser uma relação, digamos, de desconfiança. E esse elemento talvez mostre que só é possível de fato compreender alguma forma de contentamento para além desse modelo no qual o indivíduo aparece como a célula elementar da vida social. Mas esse é que é o dado interessante: para que isso aconteça, algo da demanda de felicidade deve desaparecer. Não é porque a gente vai ser mais infeliz, entendeu? Não vamos falar: “vamos fazer uma espécie de sacrifício da minha auto-realização, vamos aceitar que as pessoas não podem tudo, então todo mundo vai ser um pouco infeliz à sua maneira, a gente faz uma socialização da infelicidade”. Não se trata disso. Trata-se de dizer: talvez a maneira de pensar a realização de si a partir do conceito de felicidade seja uma má maneira – e que impede a própria ideia de realização. Até porque… há alguns que dirão: “mas eu nunca quis uma vida feliz, eu quis uma vida plena”, o que é outra coisa, às vezes bastante diferente.

As redes sociais, hoje, funcionam também como um dos lugares de comparação de um indivíduo com outro, como medida de felicidade? Qual o papel político na cultura das redes?

Eu não estudo redes sociais, embora eu tenha feito, mais ou menos dez anos atrás, um estudo sobre o uso político das redes sociais com mais dois pesquisadores, Venício de Lima e Marcelo Coutinho. Depois disso eu acompanho as redes como todos, quer dizer, não como um objeto de estudo. Eu diria que, dentre os vários efeitos desse modelo de interação, um que me chama muito a atenção é maneira com que as redes sociais permitiram a criação de bolhas de relação, que dão a impressão às pessoas de que elas estão em uma esfera pública de larga escala, sendo que muitas vezes estão em um espaço narcisicamente constituído. Acho que as pessoas vão perceber isso aos poucos, o que vai gerar uma outra forma de engajamento. Mas a questão é: há uma tendência muito forte de constituir relações a partir de proximidades, o que completamente normal, mas o fato é que, por ser uma proximidade em larga escala, fica a impressão de que se está ocupando uma esfera pública, um espaço público, com mobilização de opinião e uma confrontação contínua. Acho que isso é muito sintomático que essas redes tenham tido tanta força no Brasil. Um país em que a esfera pública é completamente degradada – ela tem um modelo concentração, que é um modelo ruim, ela tem um modelo de oligopólio, que é um modelo ruim.

O humanismo, como ele foi formulado, está acabando ou está se transformando?

Normalmente o humanismo aparece como um dos conceitos normativos mais importantes, quer dizer, o respeito ao humano, ao indivíduo…. Eu diria o seguinte: o discurso humanista é bastante problemático, porque ele parte do pressuposto de que o humano já se realizou. Uma das questões mais decisivas pra nós é exatamente essa pergunta que muitas vezes é difícil de ser formulada: a humanidade do homem realmente já ocorreu? Ou, na verdade, até hoje o que nós chamamos humanidade tem traços muito claramente excludentes? Ela tem traços excludentes no que diz respeito à estrutura da sua vida psíquica, à sua antropologia, à sua raça, ao seu gênero e por aí vai. Muitas vezes é o inumano que possui a maior potencialidade de transformações de integração. Inumano por quê? Porque perdeu um pouco a figura do humano, porque de uma maneira ou de outra aparece como misturado à animalidade, mas uma animalidade que nós degradamos pra afirmar a nossa humanidade.

Como assim?

Desde a Grécia isso é uma questão fundamental. Se pegarmos Sófocles e sua Tragédia Tebana, todas as figuras são figuras do inumano, de saber reconhecer o inumano. Édipo, por exemplo, é inumano. Por quê? Porque ele não tem lugar definido. Quem é ele? É impossível falar: “filho de quem, pai de quem”. Polinices, de Antígona, é inumano. Por quê? Porque ele se bateu contra a pólis, então foi morto e deixado sem sepultura como um animal, retornando à animalidade. Uma questão fundamental que o Sófocles levanta é: expulsar o que é inumano é a melhor maneira de destruir a nossa humanidade. Então é preciso integrar uma humanidade em contínua transformação. Isso o discurso do humanismo tende a escamotear. E por isso eu diria: não ser humanista não significa necessariamente não acreditar nas potencialidades da vida comum, da vida incomum. Significa dizer: o humanismo é um discurso normativo de um certo tipo de antropologia, contra a qual é necessário se bater.

Qual o papel do artista e da obra de arte hoje, nesse contexto em que você está pensando?

Tem um dos papéis mais fundamentais do ponto de vista das potencialidades de transformação social. Não porque os artistas trazem a voz dos excluídos ou porque dão visibilidade àqueles que não a têm. É mais do que isso: eles trazem um modo de falar, um modo de dizer, um modo de descrever. Trazem uma forma que para nós é ainda incompreensível, e com isso modificam nossa sensibilidade. Modificam a nossa capacidade de ser afetado, de sentir e não sentir certas coisas, de perceber e de não perceber, de ver e de não ver. Toda verdadeira obra de arte é a instauração de uma nova gramática. As verdadeiras obras de arte com força política são aquelas que trazem esse tipo de transformação: Mallarmé e sua poesia; Morton Feldman e György Kurtág e sua música; Beckett e seu teatro… é uma discussão política no sentido mais forte do termo: é uma outra forma de partilha e de relação que nasce; é uma outra forma de síntese, de unidade. Por isso não há nenhuma transformação de si e da vida social sem a capacidade de se deixar afetar por obras de arte que são inumanas para nós. Porque elas não confirmam a nossa imagem do que nós entendemos por humano, elas a modificam completamente. Quem fala como Mallarmé? Quem ouve como Boulez ouvia, a não ser uma espécie de figura em mutação, em transformação? A subjetividade em mutação, em transformação, tem cada vez mais dificuldade de sobreviver. Do lado da reprodução cultural como a gente conhece, da indústria cultural, do lado da instrumentalização contínua da experiência da arte, dessa desqualificação de dizer mas qual é a função?, como se só aquilo que tem função pudesse existir. Essa é a experiência mais frágil, a mais vulnerável e, no entanto, a mais importante para a nossa sociedade.

Bravo!, junho de 2017
© Almir de Freitas