A historiadora Mary del Priore fala sobre as ideias de beleza em torno do corpo da mulher brasileira ao longo da história e diz que sempre fomos moralistas
Mary del Priore pertence àquela linhagem de historiadores que gostam de se deter na vida das pessoas comuns, e, a partir dela, iluminar o cotidiano e o imaginário da sociedade. Com livros como Histórias da Gente Brasileira, Histórias do Cotidiano, Histórias das Mulheres no Brasil e Corpo a Corpo com a Mulher, a carioca é responsável por boa parte dos estudos sobre beleza e corpo feminino na cultura brasileira desde os tempos coloniais. Na entrevista que se segue, ela matiza a ideia do belo em cada época, passando em revista a visão dos portugueses diante do nu das índias, os cuidados cosméticos das escravas africanas, a elegia à mulata. E, chegando aos dias de hoje, diz que sempre fomos profundamente moralistas em relação ao corpo. “Somos uma sociedade voyeurista, e toda sociedade repressiva é voyeurista”, diz. “Não quer ver a mulher nua, quer despir a mulher.”
Na carta ao rei quando da chegada ao Brasil, Pero Vaz de Caminha refere-se muitas vezes à beleza das índias, aos seus corpos bem feitos. Existe algum relação com a ideia que se criou depois, da beleza da mulher brasileira?
Acho que essa carta sempre foi mal lida. Os portugueses se entusiasmaram em ver as tais vergonhas depiladas e descobertas, mas a nudez, tal como ela foi avistada nas nossas praias, estava longe de ser sinônimo de erotismo ou de beleza. Ela era sinônimo, sim, de pobreza vestimentar. Nós estamos em pleno Renascimento, os nus pintados têm a ver com proporções perfeitas. Nada a ver com a nudez das nossas índias, das nossas escravas seminuas que depois vão ser registradas pelo olhar dos viajantes. A mulher bela é a mulher coberta, com joias e tecidos caros, bem penteada, com mãos pequenas, pés diminutos, de Cinderela. É a mulher que o homem vai despir com os olhos. Ele jamais a verá completamente nua porque, ao contrário de hoje, a nudez total era algo de profundamente intimidante, desencorajador, para o homem. O conceito de beleza no corpo estava, sim, associado à indumentária, a uma cabeleira farta, pés e mãos pequenos.
Mas Caminha elogia as índias, fazendo inclusive uma comparação desfavorável às portuguesas.
Sim, ele faz, você tem toda a razão. Mas é bom não esquecer que a contemplação da nudez da índia se insere em um quadro de visão edênica dessas terras. Caminha quer valorizar o documento dele – ele queria arranjar um posto melhor para o seu genro. Então tudo é bonito, os índios são amigáveis, o vento sopra agradavelmente, a mata é perfumada. É dentro desse quadro que a coisa é pintada. Mas o conceito de beleza do Renascimento não passa pela nudez, mas pelo nu equilibrado. E passa sobretudo pela indumentária cada vez mais rica, com tecidos cada vez mais importantes (sedas, fios de ouro). Vou dar um exemplo interessante: depois da chegada à América, havia mapas em que mulheres representavam os quatro continentes. E óbvio que os mais bem apresentados são a Ásia e a Europa, com mulheres belíssimas, bem vestidas, cheias de joias e todos os indícios da riqueza que ambos os continentes tinham – no caso da Europa, riquezas agrícolas e, no caso da Ásia, as especiarias. A África é uma mulher gorda, de grandes seios, justamente remetendo ao úbere, à maternidade. E a América é sempre uma indiazinha pelada sentada em um crocodilo ou uma tartaruga, sem nenhum apelo, nem de riqueza, nem de erotismo.
Nem de beleza.
Nem de beleza. A beleza da época é dos cânones do Renascimento, estamos falando aí do olhar do branco: as mulheres com as testas superdepiladas, com cabelos avermelhados, cheias, gordas – gordura era formosura, e será durante muito tempo. O sucesso do açúcar de cana na Europa, que depois vai fazer a riqueza da coroa portuguesa, tem a ver também com o engordamento, com a adiposidade que as mulheres vão adquirindo. O queixo duplo, que hoje é uma das primeiras coisas lipoaspiradas da mulher, naquela época também era sinônimo de beleza. A pele alva, clara, branca era sinônimo de beleza. E, para homens e mulheres, pés e mãos pequenos.
E qual foi a visão dos viajantes estrangeiros posteriores?
Os viajantes têm uma posição muito dúbia com relação às mulheres brasileiras. O que é louvado nelas? Seus cabelos, compridos e espessos (as que não tinham cabelo compravam de meninas mortas, que eram vendidos em bandejas pelas ruas); os olhos negros, que eles anteviam entre os véus que as mulheres usavam para ir à igreja. Os dentes são muito criticados, a cor da pele é extremamente criticada, a obesidade precoce da mulher brasileira – muitos deles comparam as mulheres a frutos que amadureceram mais rapidamente por conta do calor dos trópicos. Não há absolutamente um consenso, mas elas não são vistas como deusas, longe disso. A famosa Maria Graham, preceptora das filhas do Dom Pedro I, escreve que a mulher brasileira era uma na vida pública e outra na vida privada. Na vida pública ela se arrumava para sair, botava suas melhores joias e roupas, mas na vida privada era horrível: não usava nenhum tipo de corselet (que na época retinham os seios), vivia em andrajos, em camisolões brancos, completamente despenteadas – e a gente sabe que a atividade mais comum, pelo menos até o século 18, era as mulheres catarem piolho umas das outras. Essa falta de higiene e de esmero na privacidade é muito criticada pelos viajantes.
Havia uma ideia também que a beleza estava associada ao pecado, ao mal?
A beleza em si é perseguida – não pela beleza, mas pela vaidade. A mulher não pode ser vaidosa. Os manuais do confessor dizem claramente: é proibido passar alvaiade no rosto. Alvaiade era uma espécie de pasta branca que cobria as imperfeições da pele. Passar carmim na boca era proibido. Os manuais de confessor proíbem que as mulheres que não têm dentes – e elas eram a grande maioria – de colocar a mão diante da boca ao sorrir, porque seria por pudor tapar alguma coisa que a enfeiasse. Tinha que mostrar que estava desdentada mesmo. Há uma preocupação grande para que a mulher não se embeleze. A palavra “embelecos” já aparece nos manuais de confessor, e os embelecos são proibidos. Qualquer forma de disfarce da sua feiura original era severamente condenado.
E a beleza entre as escravas negras?
Nós sabemos que as escravas de dentro eram todas bem vestidas, cuidadas – as pranchas de Rugendas e Debret mostram isso. Mas as mulheres que tinham menos privilégios promoviam a sua beleza a partir de costumes regionais, das suas nações. Por exemplo, o hábito de escarificação dos corpos, dos sinais de nação no rosto, os dentes limados ou retirados… Uma coisa muito importante: tem uma prancha maravilhosa do Rugendas sobre os penteados. As africanas sempre tiveram muito cuidado com a cabeça. Isto não só nos rituais religiosos mas também na vida social, nos vários penteados, adornos capilares. Arrumar a cabeça era fundamental. Um negro descabelado era um negro louco. Ninguém andava sem cuidados capilares. Então na sua nudez, na sua pobreza vestimentar – uma vez que a vestimenta era identificação de beleza e de nível social – elas sabiam valorizar os seus corpos pelo porte e por esses hábitos tradicionais de escarificação, de marcas de nação, colares comprados. O tráfico de escravos não trazia só gente, trazia artigos religiosos, panos da costa, toda sorte de contas. Havia formas de se embelezar muito importantes.
E quando surge a ideia de beleza da mulher brasileira?
Eu acho que o impacto da imagem na vida da mulher foi muito importante, como padrão de algo que tem que ser copiado. Se até o século 19 as mulheres estavam completamente cobertas, e a beleza residia em uma mão pequena, um pé pequeno, uma pele bem tratada e roupas muito caras, a partir da chegada das imagens – no cinema, nas fotos, nas revistas femininas que já são inúmeras na segunda metade do século 19 – começa a haver uma padronização daquilo que é belo e elegante. Tem uma série de penteados que têm de ser copiados, uma moda vestimentar que tem que ser copiada.
Com o corpo mais descoberto.
Começam a chegar artigos como cinta, sutiã, todo tipo de adereço de moda íntima que possa valorizar este corpo que, em geral, estava coberto por vários panos. Eram várias saias, várias camisas. Tudo isso é descoberto para mostrar o quê? A lingerie, que começa a aparecer e que valoriza certas partes do corpo feminino – o colo, por exemplo. Mas eu diria que a explosão desse padrão de beleza da mulher brasileira nasce com a praia e com o esporte radical dos anos 60 e 70, quando a ditadura militar deu muito emprego, criou muito infraestrutura estatal, e as pessoas começaram a comprar seu Fusca, a ter décimo terceiro e férias – e aí foram para a praia. Se você lê os memorialistas dos anos 30 e 40 no Nordeste, ninguém ia para a praia. Se iam, era para tomar banho de mar – era uma excursão. Mas a praia só vira um espaço de sociabilidade, de modismo sobretudo a partir dos anos 70, quando surge a moda da academias. O biquíni que vai diminuindo à medida que esse corpo vai ficando mais malhado, adestrado. Com as novelas da TV, a padronização do que seria a beleza da mulher brasileira, que é uma mulher que vai para a praia.
Mas tem também a beleza da mulata, exuberante, que virou imagem de exportação.
Não é só para exportação, não. Você está lembrando de um item importante – eu fiz trabalho agora com as revistas O Cruzeiro e Manchete dos anos 50 e 60, que traz esse padrão de beleza mulato. Hoje os mulatos querem se auto-referir como negros, mas historicamente é um tipo de beleza que se impõe na nossa cultura. Ela já aparece na poesia romântica do século 19: a mulata de dentes de pérola, boca de sapoti, pele cor de mel. Mas a partir dessas grandes revistas de divulgação é que a gente vai ver como a beleza da mulata é valorizada. Isso não existe mais. Desde o movimento negro e de afirmação das minorias dos anos 80, a palavra mulata passou a ser absolutamente repudiada.
Antes era item de propaganda.
Exatamente. A mulata fazia parte de todo esse conjunto de imagens que o regime militar exportava – futebol brasileiro, Carnaval brasileiro, mulata brasileira. Ela se torna, junto com outros produtos, uma imagem de exportação. E para falar do quê? Do Brasil mestiço. Nós sempre fomos uma sociedade parda e mestiça – hoje, 45% da população brasileira, segundo o IBGE. O mulato era bonito – o “mulato inzoneiro”, tudo isso vai ser cantado na República Velha, depois na República Nova e vai fazer parte de um repertório de valorização das coisas boas do Brasil. É a mestiçagem, do Roberto DaMatta, do Darcy Ribeiro, numa época em que se falava disso sem nenhum extremismo ou preconceito.
Entre essas várias mitologias, o Brasil sempre foi tido como um país mais sensual, mais permissivo, liberal. De onde vem todo esse moralismo que vemos hoje?
Essa tese do Brasil como um país onde as sexualidades são permitidas – “não há pecado abaixo do Equador” – serviu nos anos 30 e 40 para elaborar uma pensata sobre a mestiçagem, sobre quem somos nós, como viramos essa sociedade mestiça. Mas na realidade o moralismo sempre foi grande, haja vista a violência contra a mulher que perde a virgindade, a violência contra os homossexuais. No passado, as visitas das pastorais são um retrato muito claro disso: a punição vinha imediatamente para todo mundo que estivesse infringindo, não exatamente as regras da igreja, mas da comunidade. Isso é visto nas comunidades do interior até hoje. A vida pessoal é muito regrada, não pelas leis da igreja, mas pela murmuração, pela fofoca. Nós somos uma sociedade profundamente moralista – e isso pode variar dos grandes centros pro interior, entre classes sociais, entre nível de educação. Mas as pessoas mais liberais, mais abertas, formam um pequeno grupo numa maioria de pessoas de vida muito severa. E hoje, com o que os sociólogos chamam de cinturão religioso, que é o crescimento de evangélicos, a questão do pudor está na ordem do dia.
O que distingue o nosso moralismo?
O que eu acho é que nossa sociedade é voyeurista. Toda sociedade repressiva é voyeurista – não quer ver a mulher nua, quer despir a mulher. Na pornochanchada é interessante como quem despe a mulher é a câmera: um seio, outro seio, um pedaço de bunda, outro. Esse voyeurismo que nós cultivamos aqui mostra que o nosso olho não está, ao contrário de outras culturas, acostumado a olhar sem ver. No Japão, por exemplo, onde homens e mulheres nus entram juntos no ofurô. É possível dizer que o Japão é uma sociedade libertária? Não. É que lá eles estão acostumados a olhar sem ver – não estão vendo ali a mulher desnuda, estão vendo a mulher na água. Assim como as saunas mistas da Suécia não são um lugar de depravação e coito demoníaco, são lugares onde as pessoas estão nuas, mas não olham para os respectivos corpos. São culturas em que o olho está adestrado. Como nós vivemos em uma sociedade muito repressiva – e, volto a dizer, moralista sempre – o nosso olho não está acostumado a ver o nu tal como ele está sendo exibido. E aí esse moralismo se sobrepõe ao adestramento do olhar e o resultado é essa onda moralista que você está vendo aí.
Bravo!, novembro de 2017
© Almir de Freitas