Em Assim na Terra como Embaixo da Terra, Ana Paula Maia une a violência de Estado kafkiana a uma obra já marcada pelo feio, sujo e malvado
Desde 2003, quando publicou seu primeiro livro, O Habitante das Falhas Subterrâneas, Ana Paula Maia é uma voz singular na literatura brasileira contemporânea. A escritora estampa seu nome na capa de seis romances em que violência, crueza e perversão funcionam como guias de uma prosa no mais das vezes econômica, limitada ao essencial. Em vez do ordinário mundo urbano, o isolamento da vida rural; no lugar do frequente realismo psicológico, um quê de “naturalismo”, como ela mesma define — uma ideia que faz muito sentido numa literatura pulp, de fotografia suja e de, também, assumida inspiração cinematográfica.
Na entrevista que se segue, Ana Paula fala desses assuntos e de Assim na Terra como Embaixo na Terra, seu novo romance. Inspirado em Na Colônia Penal, de Franz Kafka, Ana Paula concentra a narrativa numa colônia penal brasileira, prestes a ser desativada. Entre seus muros, de quando em quando, o agente Melquíades caça os poucos detentos restantes com um rifle theco CZ.22 — uma “uma alegoria perfeita do estado de exceção”, como observa Márcia Tiburi na orelha do livro.
Por fim, um detalhe: antes de iniciar a perseguição, o caçador relembra em voz alta os crimes e as penas de suas presas — mais ou menos como a máquina de tortura imaginada por Kafka em sua novela, um mecanismo de agulhas que escreviam as sentenças na pele dos condenados. Soa familiar?
Como nasceu Assim na Terra como Embaixo da Terra? Na Colônia Penal, de Kafka, foi uma inspiração?
Quando decidi escrever sobre o sistema carcerário, a primeira coisa que fiz foi ler Na Colônia Penal, de Kafka, que é a principal referência sobre o tema. Eu queria tratar o assunto de maneira metafórica também. Levei o tema para o espaço da Colônia, pois prefiro histórias que se passam no espaço rural, cujo isolamento é sempre invocado. Uma característica dos meus outros livros. Há anos me interesso pelo tema, até que chegou a hora de contar essa história.
O que o romance nos diz sobre o Brasil?
Isso é difícil de responder porque cada leitor fará sua interpretação com seus filtros pessoais, porém, para mim, o romance aborda um Brasil ainda primitivo e cruel. Um país repleto de abismos sociais, marcado por preconceito e exclusão. Porém, em se tratando de uma metáfora, há camadas diversas de leitura. Ainda que a maioria das pessoas faça uma leitura mais convencional do livro dividindo o lado de dentro, com os excluídos e miseráveis, e o lado de fora, a população que não quer saber o que ocorre lá dentro, para mim o lado de dentro dos muros, na maior parte do tempo representa a nossa sociedade: violenta, amedrontada e mal governada. Somos nós que estamos do lado de dentro dos muros.
Já compararam sua literatura com o cinema de Tarantino, no que se refere à violência — ou à estetização dela. Você concorda?
Em parte sim, porque a violência nos meus livros é recorrente e intensa. O espaço de violência das histórias que narro são derivadas da vida dos personagens, e é um espaço real de violência. Mas a violência só existe porque esses personagens existem e precisam sobreviver aos contratempos e percalços que a vida lhes impõe. Mas, diferente do cinema de Tarantino, de quem sou fã, meus personagens não questionam a própria violência ou as decisões que tomam. Tudo flui, como um rio, que corre para o mar. Eles apenas agem e reagem.
E Rubem Fonseca, é uma referência?
Gosto muito da literatura do Rubem Fonseca, mas ele não foi uma influência para mim, porque comecei a lê-lo tardiamente, quando já escrevia meus livros. Eu tenho muito mais referências no cinema do que na literatura. Minhas influência vem dos filmes de Sergio Leone e Billy Wilder, por exemplo. O cinema de Tarantino e dos irmãos Cohen é também outra fonte importante para mim. A literatura é uma forma de contar as histórias que desejo contar, mas minhas principais influências vêm do cinema. Não acho que me encaixo em linhagem alguma da literatura brasileira. Sinto que percorro um caminho diferente do que já foi produzido, porém com ecos de um certo naturalismo.
O feio, o sujo e o malvado rendem uma literatura mais interessante?
Curioso você usar esses termos, que me remetem diretamente a um dos filmes de Sergio Leone de que mais gosto: O Bom, o Mau e o Feio, também conhecido como Três Homens em Conflito. Eu não sei se o sujo, o feio e o malvado rendem uma literatura mais interessante para os outros escritores, mas, para mim, rende. Só consigo escrever sobre isso, que me soa poético na maior parte do tempo. Adoro paisagens empoeiradas de fronteira e cheias de caminhonetes. Adoro a América Latina. Quanto mais a conheço, mais me encanta. É um gosto talvez que aguce a poucos escritores, mas gosto dessa força latina dos meus personagens, das relações de amizade e da fé que eles têm no divino. Escrever me fez amar minhas raízes latinas e eu não sabia o quanto eu apreciava esse povo caloroso que somos.
Em 2006, você publicou Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidosprimeiro no seu blog, no formato de “e-folhetim”. Como foi a experiência?
Foi uma experiência rica. Eu escrevi o texto, separei em doze capítulos curtos e os publicava semanalmente. Enquanto eu testava essa história num blog, buscava editora para o meu segundo livro: A Guerra dos Bastardos, que foi publicado em 2007 pela editora Língua Geral. A experiência com o Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos no blog me rendeu um contato direto com alguns leitores. E para minha surpresa o livro foi publicado pela Record, editora em que já estou há cerca de oito anos e com quem tenho quatro livros publicados.
Como a crítica estrangeira recebeu seus livros traduzidos?
Eu tenho uma relação muito boa com a crítica estrangeira e, de um modo geral, em todos os países onde publiquei tive retornos positivos. Fiquei quase quatro anos sem lançar um novo livro, porém, nesse ínterim, eu estava publicando no exterior e tendo muitos retornos de lá. Em julho, De Gados e Homens sai na Espanha, pela editora Siruela, que é uma casa editorial muito importante. Porém, o mesmo livro saiu na Argentina em 2015 e teve um excelente retorno de crítica.
E como foi, em especial, na Sérvia?
Eu tive a oportunidade de ir à Sérvia para lançar o livro. Teve poucas críticas, porém boas. Dependo da minha tradutora sérvia para me mandar o que sai no país acompanhado de um breve resumo. Publiquei até o momento dois livros da Sérvia: A Guerra dos Bastardos e De Gados e Homens. O que acontece é que houve, de uma certa forma, identificação dos meus textos com algumas questões do país, já que eles vivenciaram uma guerra faz alguns anos, e as marcas da violência estão literalmente estampadas por toda Belgrado.
Como você vê a literatura brasileira hoje?
Eu vejo a literatura contemporânea brasileira de modo otimista. Vivemos uma produção vigorosa, diversificada, que merece estar mais presente nos espaços de divulgação para o grande público também. Destacaria a produção do Raphael Montes, que entra de cabeça numa literatura pouco valorizada no Brasil: o thriller. E que tem sido a principal referência no gênero produzido no país.
Existe um crescente movimento de valorização da literatura feita por mulheres. Como você vê essa tendência?
Tendências podem ser um modismo disfarçado. E isso é terrível. Espero sim que haja cada vez mais literatura de qualidade, não importa o gênero. É nisso que me esmero.
Bravo!, junho de 2017
© Almir de Freitas