Jornalista, crítico de cinema, professor da Unicamp e membro da Membro da Science Fiction Research Association (SFRA), Alfredo Suppia afirma que a pouca força da “ficção especulativa” no Brasil está diretamente relacionada às nossas estruturas conservadoras e arcaicas. “Em um país que vive essencialmente do passado, da promessa de um futuro melhor, não surpreende que a imaginação tenda a ser embotada”. Mas nem tudo está perdido. “Sou pessimista em relação ao Brasil, mas sempre otimista em relação aos jovens cineastas brasileiros e à ficção científica brasileira como um todo”, diz.
De que maneira a ficção científica (e fantástica também) pode nos ajudar a compreender o mundo, de uma maneira que a ficção realista não pode fazer?
Toda obra de arte, em qualquer gênero, tem o potencial de nos fazer refletir acerca do mundo em que vivemos, em alguma medida. A ficção realista fez e continua fazendo muito nesse sentido, ela tem uma força muito grande em termos de provocar reflexões mais amplas, por parte do leitor/espectador, acerca do mundo em que se vive. Por outro lado, a ficção e a fantasia não ficam atrás: trata-se apenas de um outro “método” para provocar essa reflexão.
Que método é esse?
Ele se baseia numa especulação mais intensa (daí podermos nos referir tanto à fantasia como à ficção científica como “ficção especulativa”), numa descontinuidade mais radical entre o mundo histórico e o mundo ficcional. A ficção científica e a fantasia visam, portanto, a um efeito estético de caráter um pouco diverso do da ficção realista, e por meio de processos cognitivos sutilmente diferentes, muito embora ambos (a ficção realista e a ficção especulativa) possam vir a ter impactos equivalentes em termos de reflexão e conscientização política.
Na sua opinião, o que atrai as pessoas para as obras do gênero?
Justamente o método baseado em especulação mais intensa e contraponto com a realidade. Toda a dimensão lúdica e cognitiva embutida nas estórias/fábulas/contos/romances/filmes do tipo “what if…?” (“E se…?”). O que aconteceria se um dia encontrássemos vida em outros planetas? O que aconteceria se pudéssemos voltar ao passado? O que aconteceria se a Alemanha tivesse ganho a Segunda Guerra Mundial? O que aconteceria se houvesse ditadura militar no Brasil até hoje?
A que você atribui o sucesso entre os jovens de livros e filmes como Jogos Vorazes, Maze Runner e Divergente?
Essas obras variam muito em termos de qualidade, sofisticação e penetração no público, mas grosso modo eu diria que o sucesso desse tipo de ficção especulativa se beneficia da curiosidade inerente a qualquer jovem, sua vontade de questionar o mundo em que vive e/ou imaginar outros mundos. A vida jovem é, ou pelo menos deveria ser, uma vida de descobertas, de curiosidade acerca do novo ou do desconhecido. Nem sempre é assim, é claro, mas suspeito que a fantasia e a ficção científica façam tanto sucesso com os jovens por “falar a mesma língua” ou “sintonizar a mesma frequência” dos pensamentos daquele jovem que busca entender o mundo, transformá-lo ou simplesmente imaginar outros caminhos possíveis.
À parte a produção americana e britânica, que obras de outros países você destacaria no gênero?
Ficção científica e fantasia de destaque é produzida em todos os cinco continentes. Devemos lembrar da Europa como um todo (França, Alemanha, Espanha etc.), países da África como África do Sul e Nigéria, México e Argentina na América Latina, Austrália e Nova Zelândia na Oceania, China, Japão, Índia, Coréia e Tailândia na Ásia, além de Sérvia, Croácia, Rússia e Turquia na interface do “ocidente” com o “oriente”. Mesmo assim meu elenco é injusto, pois deixa de fora muitos países cuja produção em ficção especulativa certamente escapa ao meu conhecimento. No Brasil vivemos isolados do resto do mundo, entre a mediocridade e a mesmice de um mercado editorial oportunista e acomodado e a influência deletéria de uma indústria audiovisual centrada na televisão – uma mídia com grande potencial, porém usada no Brasil para garantir que o país nunca supere de vez sua condição de subdesenvolvido.
Por que a ficção científica, na literatura e no cinema, nunca vingou no Brasil?
Num país extremamente conservador, avesso à justiça social, avesso à modernidade, avesso à superação de estruturas arcaicas de poder e opressão, um país que vive essencialmente do passado, da promessa de um futuro melhor, não surpreende que a imaginação tenda a ser embotada. Ficção científica no Brasil é tida como “bobagem”, “coisa de criança”, ou então como “coisa de país rico”. Talvez faça mesmo sentido: a sociedade brasileira não quer pessoas curiosas, não quer ciência e tecnologia que modifique sua história e estrutura. Não querendo isso, é natural que não queira nem sequer imaginar isso, ou especular sobre isso, que é o que a ficção científica faz em larga medida. Suspeito que, mais importante ainda do que a disseminação de uma “mentalidade” científica e tecnológica, é a mentalidade utópica, e portanto uma mentalidade curiosa e questionadora da realidade que de fato alimenta a fantasia e a ficção científica. Não há incentivo à curiosidade no Brasil. A educação nunca foi nem nunca será prioridade do Estado. O lema que deveria constar em nossa bandeira, em lugar de “ordem e progresso”, deveria ser “pense menos e obedeça”.
Quais obras literárias você destaca já produzidas no Brasil?
Destaco a obra de Gastão Cruls: A Amazônia Misteriosa (1925) e de Jerônymo Monteiro (os livros O Irmão do Diabo (1937), Três Meses no século 81 (1947), A Cidade Perdida (1948), Fuga para Parte Alguma (1961), Os Visitantes do Espaço (1963) e Tangentes da Realidade (1969). E também todas as obras em prosa e poesia do escritor André Carneiro, que infelizmente faleceu em 4 de novembro de 2014. Livros como Ângulo & Face (1949), Diário da Nave Perdida (1963), Piscina Livre (1980), Amorquia (1991) ou Confissões do Inexplicável (2007). Recomendo também, de Carneiro, seu fundamental Introdução ao Estudo da Science Fiction (1967), obra pioneira no estudo da ficção científica no Brasil. Há ainda o Herberto Sales de O Fruto do Vosso Ventre, romance (1976). Domingos Carvalho da Silva e seu conto Água de Nagasáki (1963) não pode ser esquecido, assim como Humberto de Campos e Os Olhos que Comiam Carne, um de seus contos mais impactantes. Outro nome fundamental da ficção científica brasileira é Rubens Teixeira Scavone, falecido em 2007. Dentre autores mais jovens e/ou ainda em atividade, destaco Ignácio de Loyola Brandão, em livros como O Homem do Furo na Mão (1987) e o essencial Não Verás País Nenhum (1981), bem como a literatura produzida atualmente por nomes como Roberto de Sousa Causo, Finísia Fideli, Gerson Lodi-Ribeiro, Jorge Luiz Calife e vários outros.
E no cinema?
Destaco José de Anchieta, diretor de Parada 88: O Limite de Alerta (1978), e Roberto Pires, diretor de Abrigo Nuclear (1981). O fato de o filme Uma História de Amor e Fúria (2013), de Luiz Bolognesi, ter ganho o prêmio do festival de Annecy na França também foi algo importante para o gênero no Brasil.
As perspectivas do gênero no Brasil são melhores num futuro próximo? O que de bom vem por aí?
Com maior acessibilidade à produção e distribuição de conteúdos audiovisuais, jovens que teimam em ser curiosos vêm contribuindo para o cinema de ficção científica, com obras tanto em curta quanto em longa-metragem. Kléber Mendonça Filho fez um bom trabalho no curta Recife Frio. O cineasta Carlos Canela, de Minas Gerais, também já dirigiu curtas importantes, como Bailarina ou O Homem da Cabeça de Papelão. Adirley Queirós reacendeu a necessidade de ficção científica no Brasil com Branco Sai, Preto Fica (2014). Sou pessimista em relação ao Brasil, mas sempre otimista em relação aos jovens cineastas brasileiros e à ficção científica brasileira como um todo. Na literatura, mestres experientes e novos talentos têm garantido a sobrevivência da ficção científica e fantasia brasileiras.
Que tipo de distopia você imaginaria para o Brasil?
Já vivemos numa.
Bravo!, setembro de 2016
©Almir de Freitas