O psicanalista paulista Christian Dunker fala sobre a crise de autoridade da ciência, o legado da pós-modernidade na acepção da verdade como “pacto” e as perspectivas que a arte pode abrir para o futuro
Um dos fundadores do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo, o psicanalista paulista Christian Dunker tem na interdisciplinaridade anunciada do instituto a chave de um pensamento que vem se tornando referência na análise dos tsunamis políticos e culturais dos dias que nos abatem. Professor titular do Instituto de Psicologia da USP, autor de livros como Reinvenção da Intimidade: Políticas do Sofrimento Cotidiano e Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: Uma Psicopatologia do Brasil Entre Muros, Dunker tem como aliado ao rigor acadêmico e à experiência clínica o esforço na divulgação de um pensamento que mira as “patologias do social”, da vida em condomínios físicos ao grande palco das redes sociais e suas implicações éticas e políticas.
Na entrevista que se segue, Dunker fala sobre as transformações nas ideias de verdade ao longo da história e detalha como a modernidade reduziu seu potencial ético e nos encaminhou ao movimento regressivo em que nos metemos. E como toca nossos conflitos íntimos, pré e pós-verdades. “A verdade tem um preço e demanda trabalho, por isso não é um assunto apenas para princípios, visões de mundo ou crenças passivas”, diz. “Ela nos liberta, mas nos aniquila também, por isso queremos desesperadamente nos apossar dela, porque ela significa poder e autoridade; mas também nada queremos saber dela, porque é o fulcro de nosso desejo e a fonte de nossa angústia.” E detalha, ainda, o legado da pós-modernidade na acepção da verdade como “pacto” e as perspectivas que a arte pode abrir para o futuro.
Desde que momento podemos falar de uma crise e da perda de prestígio da verdade no pensamento ocidental?
Seria melhor falar em uma mudança de posição da verdade nos discursos que organizam nossos laços sociais. Se pensamos na verdade em sua raiz grega como aletheia, ou seja, revelação e descoberta do que é, essa mudança de posição derivou da mutação da autoridade que habitualmente conferíamos à ciência. Em vez de nos dobrar ao saber sancionado pelo cientista, em geral vestido com o branco da imparcialidade, o acesso popular a bases respeitadas de produção de dados e artigos revelou que a ciência é uma atividade que contém muito dissenso, concorrência de teses e conflitos entre modelos explicativos. Ou seja, com alguma paciência e dedicação qualquer um pode ter acesso real a como a ciência acontece. Isso é muito bom. Consagra e realiza o ideal de que se trata de um saber público, produzido no contexto de regras abertas e de horizonte comum. A ciência, pelo menos a ciência moderna, depurou essa noção de verdade como revelação inabalável e a substituiu pela dinâmica do saber que sempre pode ser refeito, criticado e, portanto, aprofundado. A verdade é só uma posição, que se desloca conforme a ciência avança e que no fundo se traduz, praticamente, por critérios de método, regras de replicação e confirmação ou derrogação de hipóteses e resultados. Mas não era assim que as pessoas comuns viam a ciência antes da popularização da linguagem digital, ou seja, antes do violento barateamento do acesso à informação.
O que deu errado?
Quando se percebeu que a ciência não era um consenso unívoco, a divergência se infiltrou em algo que é mais crucial nesta crise de prestígio, ou seja, a ideia de que qualquer crença ou opinião poderia se candidatar e deveria merecer o mesmo apreço que aquelas que estão em curso nas diferentes disciplinas. Esse é o argumento mais velho que se conhece desde as reações teológicas contra a modernidade – ou seja, se a ciência não explica tudo, não poderia haver espaço para anjos e demônios? Neste caso a resposta é negativa. Podemos estudar cientificamente por que e como as pessoas acreditam em anjos ou demônios, terra plana ou criacionismo, mas isso é completamente diferente de partir da sua existência ou da legitimação do saber no qual este se produz. A crise de autoridade da verdade advém da descoberta de que a ciência tem interesses, ligados às suas condições de produção: universidades, financiamentos públicos, disputas tecnológicas, formação de políticas públicas. O truque aqui é pensar que isso tudo existe porque o cientista não é um agente neutro que se submete à razão, e sim alguém perseguindo os mesmos interesses de qualquer outro grupo.
No texto Subjetividade em Tempos de Pós-verdade, você diz que a pós-verdade retoma vários aspectos pré-modernos da verdade, ou seja, uma verdade inflacionada de subjetividade. Como se dá isso?
Sim, essa modificação do tipo de autoridade e da percepção social das regras de reconhecimento do saber faz com que uma determinada demanda se desloque. A demanda que a ciência jamais quis ou pode responder, que é a demanda de sentido. Se a ciência não vai mais me dizer qual é meu lugar no mundo e se ela me apresenta uma perspectiva de unidade do sentido muito mais precária do que eu imaginava, abrem-se as portas para procurar isso em outro lugar. Posso retornar à forma de religiosidade ou teologia que são pré-modernas no sentido de que não admitem a laicização do poder (como em alguns estados islâmicos), que não reconhecem a limitação da autoridade eclesiástica em matérias de saúde, educação ou cosmologia, que respondem a essa indeterminação do saber por meio de um movimento regressivo. Há também aqueles que se nutrem do saber da tecnociência para formar um híbrido e juntar as duas coisas, como a cientologia, certos futuristas e amantes da mítica tecnológica, como se ela pudesse determinar unidade e sentido para nossas formas de vida.
Como ficou a nossa ideia de verdade, então?
O fato é que, desde o início da modernidade a verdade foi deflacionada de seu poder de nos transformar, ela foi reduzida em seu potencial ético. Ela reapareceu denegada pelas religiões, instrumentalizada pela magia, transformada em ponto conjectural pela ciência ou capturada pela convecção jurídico-normativa. Ficamos assim divididos entre a ascensão do modelo de verdade latino, baseado na veritas, dizer a verdade, nada mais do que a verdade (… em nome de Deus?). Neste caso, falamos da verdade como posição de tratamento para conflitos e nem tanto da verdade como conhecimento abstrato evidenciado em proposições bem formadas, refutáveis ou verificáveis. A verdade é uma posição crucial quando falamos de nossa divisão subjetiva e dos conflitos que ela envolve: Ele me traiu? Você me enganou? Você me ama de verdade ou não? Aqui a verdade tem a ver com o modo de relação que mantemos com nossa própria palavra. Quanto e como ela dura no tempo. Enquanto a verdade da aletheia tem a ver com o presente, por isso ela muda constantemente, a verdade da veritas tem a ver com a relação que você mantém com o passado. É, por exemplo, a verdade da história, a verdade da promessa, a verdade de nossos atos performativos e não só declaratórios.
E como se dá isso na prática, no nosso dia a dia?
Em geral, como um amontoado de regras nas quais não nos reconhecemos, um excesso de normas de determinação de pensamento, comportamento, que nos privam da experiência de liberdade, que adviria da verdade. Note que a crise da verdade tem íntima relação com a judicialização ou contratualização das relações humanas. Pois a judicialização suspende a força ética da verdade. Não importa se matei ou roubei, desde que consiga fazer o acordo adequado e calcular o risco jurídico da operação. Nossa relação com muitas instituições se torna, assim, deflacionada de potência ética. Pense na maneira como muitas grandes empresas se relacionam com os consumidores. Às vezes, preferem e praticam extorsões, maus-tratos e opressões contra empregados, fornecedores e clientes porque é legal, apesar de ser imoral. Quando reduzimos a justiça ao direito, a verdade ética da transgressão, com seu esperado correlato de reparação, desculpa ou reconhecimento, torna-se um protocolo de ajustamento, sem valor de verdade.
Para o sujeito comum, abraçar as verdades alternativas é uma espécie de “libertação” da autoridade?
Sim, a verdade é constantemente convocada como ponto de conciliação entre justiça e liberdade, por isso a noção de verdades alternativas exprime, no fundo, uma derrogação do regime de verdade no qual nos sentimos inautênticos, determinados e fragmentados e que, portanto, deve ser trocado por um novo horizonte. Vê-se assim como o lugar da verdade é decisivo para desencadear processos de transformação social e subjetivo. Se acredito que minha miséria é um destino cármico enviado por Deus, minha atitude é de resignação; se acredito que é efeito de um pacto social malfeito, eu me engajarei para mudá-lo; se acredito que é efeito do meu mérito, eu me esforçarei para exibir os signos deste mérito; se acredito que é um efeito de meus talentos naturais, nada mais justo que eu os exponha ainda mais. Mas, afinal, com tantas crenças alternativas, qual é a verdade sobre minha miséria?
É uma pergunta que pode ser respondida?
Este é o ponto problemático da conversa: a verdade tem um preço e ela demanda trabalho, por isso não é um assunto apenas para princípios, visões de mundo ou crenças passivas. A verdade é sempre mais dolorosa do que pensamos. Ela nos liberta, mas nos aniquila também, por isso queremos desesperadamente nos apossar dela, porque ela significa poder e autoridade; mas também nada queremos saber dela, porque ela é o fulcro de nosso desejo e a fonte de nossa angústia. A verdade liberta, sim, mas dito dessa maneira gratuita e recolhida ao nosso condomínio narcísico, ela liberta tanto quanto o trabalho. Como está escrito no portão dos campos de concentração nazistas: “O trabalho liberta” (Arbeit macht frei). Verdade ou não? Quer saber da verdade? Vamos falar da morte, da pequenez humana, de nossa impotência e envelhecimento, de nossa agressividade, de nossa falta trágica de sentido e destino. Amargo, não é? A verdade é um percurso, como o desejo, parte do presente da aletheia, vai ao passado da veritas e segue ao futuro como tarefa e emunah a realizar. Verdade precisa de atos que a nomeiam, engajamento subjetivo e trabalho de transformação.
Por que as “paróquias” que se formam daí, como você observa, são mais acolhedoras que a autoridade?
A verdade do seu pequeno clube não vem com nada disso, ela demanda apenas ajustamento e conformidade, aceitação gratuita e exclusão de conflitos. As paróquias são boas para contar piadas… sobre outras paróquias. Mas considere que em geral elas vão trazer um padre ou pastor, uma missa e um compartilhamento de problemas. Costuma ser nessa hora que desejamos mudar de paróquia.
Qual o legado da pós-modernidade na construção do mundo da pós-verdade?
O pós-modernismo é basicamente um movimento cultural, que tem raízes no fim dos anos 70, em concomitância com a emergência de uma nova forma de capitalismo: neoliberal, financeiro, ligado à cognição e à imaterialidade da marca, mais do que à produção. Seu ponto de maior impacto talvez tenha sido a arquitetura, com seus prédios envidraçados que combinam vários estilos, transmitindo um aspecto de suntuosidade e também certa autoironia. Os antigos condomínios, emergentes nesse período, também são exemplos de pós-modernidade, na medida em que refletem a alta performance do gosto individualizado, em que uma casa não dialoga mais com a vizinha em termos de lógica construtiva nem de subordinação estética. Aqui, naturalmente, devemos evocar a terceira acepção formativa do conceito de verdade, que procede da raiz judaico-cristã e sua ideia de emunah, ou seja, a verdade como confiança e pacto.
Como se aplica essa ideia nesse contexto?
A emunah é a verdade no sentido da confiança e da partilha, ela liga as palavras do passado com uma aposta comum no futuro, como se vê na dimensão da promessa e do porvir. O pós-modernismo deu figuração concreta ao que Kant chamava de comunidades de gosto, que substituem as comunidades de destino, mostrando como todas as áreas da vida, de se vestir à forma de habitar a casa, do consumo às decisões de entretenimento, do modo como escolhemos parceiros amorosos e sócios em empreendimentos à maneira como professamos crenças e usamos a linguagem, ou seja, toda nossa forma de vida, está atravessada pela expressão de nossa “personalidade”. Lembremos que a pós-modernidade veio com estilos de vida como o dos yup (young urban professionals, os yuppies), góticos, emos e assim por diante, como se convencionou chamar o tempo das tribos. Essa nova maneira de produzir identidade, que privilegia padrões horizontais-comunitários de subjetivação em vez dos tradicionais padrões verticais-institucionais, compõe a gramática social necessária para que a verdade se reduza e dependa do grupo de referência e a densidade específica da sua liquidez.
As “verdades alternativas” demandam verossimilhança das narrativas que criam?
Sim, isso é muito importante. Lacan foi o psicanalista que mais trabalhou para a incorporação do conceito de verdade em psicanálise. A verdade não é o real, mas mantém com este uma relação dialética e temporal. Ele afirma que verdade não pode ser toda dita na estrutura do mito que a torna possível. Ou seja, esse semidizer da verdade acolhe o caráter de não totalidade que encontramos na ciência, mas sem se confundir com a posição de exclusão metodológica da verdade que encontramos nela. A verdade concerne ao mito ou ao menos ao que sobrou do mito no universo moderno capitaneado pela deflação ética da verdade, e aqui a verdade se aproxima da magia e da religião, mas a psicanálise distingue a narrativa como expressão transformativa do acontecimento do discurso, como lógica de sua organização. Portanto, a verdade se estrutura como uma ficção, sem nossas teorias sexuais infantis, sem nosso romance familiar, sem nosso mito individual de neuróticos, sem os nossos delírios de grandeza ou perseguição, erotomania ou ciúmes, seríamos seres privados da potência da verdade. Mas a verdade não está na semântica, nem na aderência dessas narrativas ao mundo, cuja característica maior é tornar prescritivo e orientar minha ação ética, aquilo que é descritivo e serve apenas para simbolizar determinado estado de coisas. Já se disse que todos temos direito a interpretações alternativas, mas não a fatos alternativos. Certo, mas precisaríamos acrescentar a isso o fato de que temos direito a meio dizer ao casamento entre fatos e interpretações. Aqui entra a segunda tese importante de Lacan sobre a verdade, ou seja, não existe metalinguagem, isto é, não existe posição privilegiada de onde poderíamos enunciar a verdade sobre a verdade ou saber o que quer o outro do outro.
Por exemplo?
Quando dizemos que toda a verdade é relativa (ou alternativa) estamos dizendo “toda a verdade”, portanto, a verdade que se está a enunciar (“que toda verdade é relativa”) é necessariamente falsa. Mas se é autocontraditório, logo falso, dizer que “toda a verdade é relativa”, isso não significa que seu oposto, “toda a verdade é absoluta”, seria então a posição vitoriosa, entende? A verdade não é um jogo de soma zero. As ficções, ilusões ou mentiras que nos inventamos não estão apenas na relação de seus termos com o mundo, como também na relação dos seus termos com o outro e na relação do sujeito consigo mesmo. O risco da não distinção entre narrativa e discurso é que passamos a achar que o poder causal das narrativas é maior do que ele efetivamente é ou que ele pode dizer toda a verdade. Há coisas no mundo que se alteram quando falamos delas de modo diferente, mas há coisas que não. Há uma ontologia variável e outra, fixa. Nem tudo que se diz depende do interesse de quem diz. Assim como nem toda causalidade está na linguagem. A guerra de narrativas nasce contemporânea do pós-modernismo como crítica da linguagem de um ponto de vista feminista, e também criticando a hierarquia entre os saberes erudito e popular, com os Cultural Studies, literal e metafórico, como quer a teoria da desconstrução, central ou periférico, como quer a teoria pós-colonial e as epistemologias do sul. Essas estratégias nascem quando ficou evidente que a crítica da linguagem é ao mesmo tempo uma crítica do poder e uma forma de reintroduzir o problema da verdade em um universo em decomposição de unidade, segregação de divergentes e opressão de minorias. O problema se tornou distinguir o reconhecimento de particulares com um conhecimento em estrutura particular, isso passou a opor narrativas que têm a mesma orientação discursiva e a invisibilizar narrativas como opostas por compromissos discursivos com verdades inconciliáveis. Ou seja, a crítica da linguagem passou a desconsiderar a contradição, sedimentando a hipótese política de que a narrativa mais forte vence, nem que seja pelo número de vozes que a endossam. Aqui estamos longe da verdade e perto da verossimilhança que imaginariza a diferença, tornando-a insolúvel.
Outra afirmação sua é a de que a pós-verdade ataca a estrutura de ficção da verdade. Pode explicar melhor?
A verdade em estrutura de ficção seria um truísmo se não conseguíssemos definir o que é uma ficção. A palavra vem de fictio, que quer dizer hipótese. Na vertente linguística, fictio se exprime pelos diferentes “como se” que mobilizamos para sustentar nossas trocas sociais. Por exemplo, ajo como se fosse um gentleman, mas na verdade me sinto um bárbaro deseducado, portanto, quando estou na vida social, sinto-me em uma espécie de comédia representando um papel. O mundo se torna um palco, o theatrum mundi, dos pensadores do século 16, o teatro da política como no ensinou Maquiavel, o teatro da normalidade, como nos ensinou Erasmo de Roterdã em Elogio da Loucura, o teatro que precisávamos ensinar das almas selvagens do novo continente, como se encontra entre os jesuítas, o teatro que será examinado ao fim do dia por minha consciência crítica. A ficção, portanto, leva-nos ao registro da metáfora que somos para nós mesmos e às alegorias enlouquecidas que nos possuem quando esquecemos disso.
Como fica o real nessa equação?
Na verdade, o teatro não é mundo, e a vida não é um palco. Na vida a gente morre de verdade. No mundo há um real que o teatro não alcança. É justamente o que chamamos de não representável. E isso não é não representável porque não temos recursos técnicos para isso, aliás toda nova linguagem, toda nova expressividade, todo novo discurso, como é o discurso digital, altera nosso “como se”. Lacan chamou esse “como se” de semblante e disse que ele estava sempre suportado pelo lugar da verdade. Ou seja, desde que podemos fazer semblante há verdade; quando isso não acontece, a gente modifica o semblante ou aparece o real: a angústia, a castração, o não representável, o impossível. Ora, este impossível é suturado por uma espécie de perspectiva deformadora, chamada fantasia ou fantasma. Toda a nossa economia de gozo, prazer e satisfação depende da gramática de nosso fantasma.
E a fantasia?
O problema com a pós-verdade é que ela descobriu que se pode parasitar as ficções de tal maneira que elas perdessem seu estatuto de “como se”. Isso não significa uma confusão entre realidade e representação, e sim um fechamento daquilo que não é “como se”, ou seja, um “como se” que se compõe apenas do possível e necessário, sem espaço para o impossível e contingente. Desta maneira, os fantasmas, que são sempre contingentes, assumiram “força de lei”, e deles passou a emanar uma espécie de autoridade indiscutível simplesmente porque são fantasmas. Ora, fantasmas não são sintomas, fantasmas coordenam a produção e sustentação de sintomas. Ao atacar a potência da ficção, atribuindo-lhe força e reconhecimento por si só, temos subjetividades que associam o sofrimento com relação entre o volume do eu e o tamanho do palco, sem relação de hiato com o mundo. Isso leva a uma espécie de leniência ou ajustamento conformativo da realidade com essa prerrogativa do fantasma. Isso não é muito bom em termos políticos, pois nega o antagonismo e também é péssimo em termos da posição subjetiva, pois evita o real. A corrosão do fantasma, para parafrasear o título de Richard Sennett, desequilibra o cálculo neurótico do gozo, mas é possível que isso seja um momento passageiro. Se olhamos para a história, a verdade já morreu tantas vezes e ressuscitou que não seria uma surpresa que isso se repetisse mais uma vez.
Quais podem ser, na sua avaliação, os impactos da cultura da pós-verdade na arte?
A arte tem uma tarefa homóloga a nossa em termos de travessia desta conformação na qual nos metemos. Ela precisa voltar a se pensar de modo mais histórico e de certa maneira mais crítico em relação aos engajamentos reativos. Não é um problema em si que a arte esteja atravessada pelas formas de sofrimento de nossa época, afinal é possível que isso tenha sido uma constante, o problema é que ela toma esse sofrimento na sua expressão política direta em vez de propor uma linguagem que esteja um pouco a sua frente. Depois de se autonomizar nos anos 60, a reflexão formal sobre a linguagem aparentemente deixou de importar na sua consequência política. A mania normalopática que nos assola a todos tomou a arte por dentro à medida que se internacionalizaram e se profissionalizaram sua circulação, sua curadoria e seu consumo. Vejo que agora ela está às voltas com o retorno do real, que são as formas de tematizar o fracasso da representação, o inominável, o indizível, o abjeto. Perfeito, mas o problema é que quem caminha mais fortemente nessa direção acaba renunciando ao outro impossível, que é a invenção de uma maneira nova de colocar a contradição social e o antagonismo.
Qual a consequência disso?
Sem isso a arte acaba sem programa, porque devorada pelos programas políticos existentes, e acaba sem forma, porque devorada pela sua canibalização como instrumento, design e decoração. Note que a coisa mais interessante que apareceu no debate das artes é essa relação dos museus com as obras, ou seja, do espaço da acontecência com o evento. Como se ela tivesse captado a problemática da relação entre palco e mundo, colocando-se o problema nesse nível, ao menos até onde consigo ler essas coisas de Norman Foster, Renzo Piano e Frank Gehry. A literatura de ficção enfrenta bem um problema homólogo a esse quando, assim como o cinema, detém-se a trabalhar nas fronteiras entre documentário e ficção. Ou seja, é a relação entre o real e a verdade que passa a ser incorporada por essa nova perspectiva, mas ainda não vi como o problema da inexistência da metalinguagem pode ser mais bem aproveitado aqui.
Em que sentido, e em que situações, a pós-verdade requer “uma vida em estrutura de show”, como você defende? Estamos em um novo estágio da sociedade do espetáculo?
Lembremos que quando Debord propõs a sociedade do espetáculo ele tinha um programa crítico muito bem-posto chamado situacionismo, ou seja, a inclusão do processo no produto e a reflexão sobre a situação de encontro como uma experiência corrosiva. A sociedade do espetáculo pós-verdadeiro já absorveu isso, lida cinicamente com as críticas sobre a insuficiência da metalinguagem e se contenta com muito pouco do ponto de vista do desafio cognitivo. A vida em estrutura de show, o show do eu é uma experiência que tem certa duração e dada suportabilidade. Voltemos ao século 16, mas também poderíamos aprender muito com a chegada do romance no fim do século 18. O começo é sempre um choque e um aprendizado para os atores que têm de aprender a amar e adiar, a sofrer e se revoltar, nessa nova gramática. Mas depois surgem o cansaço e a decepção com as possiblidades dessa nova forma de vida. De certa maneira estamos entrando nisso agora, com a primeira geração de nativos digitais, nascida depois de 1995 e que tem uma relação muito menos encantada e iludida com o show da vida. São déficits de intimidade ascendentes, rarefações narrativas, depressividades nunca antes vistas, compressões e deflações narcísicas que testemunham bem como o show se tornou agora uma casa de horrores.
Por quê?
Há muitas partes de nossa vida que não se comportam como um teatro: pensamentos que não conseguimos evitar, repetições que nos controlam, pessoas e coisas com as quais a gente não consegue manter o “como se”. Parece que com a expansão do teatro fica mais saliente que os sintomas são um ponto de verdade incontornável e não domesticável em cada um de nós. É meio óbvio que, quando a vida se estrutura como um espetáculo, a noção mesma de espetáculo se decomponha. Uma coisa importante nessa direção, quando pensamos na cultura, é que o espetáculo ficou muito barato. Como disse antes, a verdade tem um preço e demanda trabalho, quando o espetáculo é de graça ele desce do palco e se integra à paisagem do mundo. No fim, a coisa mais importante são aquelas três batidas do sinal que antecedem o início da peça. Mesmo sabendo que aquilo é uma mera formalidade, que os atores são treinados e que o público está bem-comportado, sentimos sempre e mais uma vez aquela pontada de angústia, porque agora é para valer. Veja que não acontece a mesma coisa quando estamos no cinema e se apagam as luzes. A expectativa aumenta, mas não há aquele pequeno frio na barriga, que quem atende pacientes ou dá aula sabe bem como é. Beckett ainda é nosso mestre ao captar esse momento de fracasso como o grande tema na passagem dos espetáculos caídos para os novos semblantes.
Que parentesco, em sua opinião, a era da pós-verdade guarda com os totalitarismos do século 20?
Certamente, a pós-verdade é uma das condições que permitiram a emergência desta onda conservadora mundo afora, que começa em Trump e termina no nosso sargento de milícias promovido a capitão. Assim como na década de 30, temos um forte sentimento de identidades não reconhecidas, aqui como lá, forma-se um novo tipo de massa – lá massas disciplinares, aqui massas digitais. Desemprego e sentimento de que grandes sonhos foram decepcionados ou traídos. Uma reação ao neoliberalismo identitário é voltar a uma forma regressiva da verdade. Não é um acaso que todos esses novos líderes usem uma linguagem autêntica rude e na medida do possível sem intermediários. Os líderes carismáticos sempre se valeram dessa manobra pós-verdadeira de fingir que é “como se” estivessem para além das instituições e do poder, para mobilizar alienações regressivas e manipular ódios e inimigos. Mas não me parece correto chamar este novo movimento de fascista, porque os totalitarismos clássicos, como nazismo e stalinismo, procuravam moldar a comunidade nas instituições, eliminando quem não coubesse nessa operação. O neofascismo é neoliberal, deixa para que cada um se torne um empreendedor do sofrimento alheio. As comunidades não têm uma identificação vertical com o chefe, imitando seus detalhes como o bigode de Hitler, analisado por Freud, o líder é reconhecidamente uma figura como qualquer um (como eu), tosco, irrelevante e sem aptidões especiais. Ele promove um tipo de identificação que deveríamos chamar de circunstancial, pois não há nada no sujeito que o disponha a ser eleito como líder, e poderia ser um monge, um garçom ou um gerente-minuto, o fato que mobiliza minha identificação é que eu posso usá-lo para desculpar e promover meu próprio fascista interior. Eu alugo um significante mestre a partir do qual posso desinibir meu fantasma, ainda que meu fantasma tenha pouca relação com o do líder.
Como “viver junto” neste mundo em que a pós-verdade alimenta ódio e violência?
Durante alguns anos atendi adolescentes, e eles sempre tinham um momento decisivo em que diziam para si mesmos que precisavam saber se não daria certo do jeito deles, mesmo pressentindo que não daria, mesmo tendo aquela voz odiosa e materna sussurrando ao fundo: “Eu não te disse?”. Muito do ódio e da violência que tenho acompanhado tem esta estrutura adolescente. Seja pela confusão sectária de ideias delirantes que se tornam inabaláveis para o sujeito, seja pela inconsequência de um desafio que você sabe que tem tudo para dar errado, seja ainda por essa mistura de paixão pelo real e ingenuidade diante da verdade. A pós-verdade parece badalar o sino do relativismo e da multiplicidade, quando o que ela evoca é a intolerância e a violência quando contrariada. “Taokey”, a adolescência chegou ao poder. Vamos ver o que ela faz além de se matar numa motocicleta e fumar maconha pra caramba.
O que podemos esperar do futuro?
Há certas práticas que serão retomadas. Aprender a escutar os outros, o que descobrir, como encontrar alguma interessância no outro, por mais que o outro não ajude muito. Por isso acho, acho mesmo, que o futuro será bem interessante. Não o futuro próximo, o do próximo capítulo. Este será de amargar, mas aquele que vem depois do próximo. Este sim, que talvez nem chegue a ver com estes bons olhos que a terra há de comer. Não podíamos avançar mais sem que aqueles que perderam muito terreno reagissem de alguma maneira. Sim, o capitalismo nos engolirá a todos, disso não tenho dúvida. Que as coisas terminam mal sempre também estou de acordo. Ética trágica para todos, mas não sem interessância. Essa ideia de que futuro tem que vir com esperança, que a esperança é o antídoto do medo, tem a sua razão de ser, afinal esperar é um dos sinônimos do desejo, assim como saudade, sonho e solidariedade. Mas o legal é quando não precisamos tanto assim de esperança para autorizar nossos sonhos e desejos.
Como assim?Quando falamos em esperanças, falamos em ilusões que valem a pena, em ideias que um dia podem virar realidade, isso é importante, mas em geral começa a gerar uma espécie de autossuborno na gente. Só aposto se o outro colocar algumas fichas na mesa, só embarco se me prometerem um destino confortável, só entro se você me der alguma coisa. Isso não. Isso é como funciona nossa relação com a linguagem digital, sempre achamos que o outro está querendo nosso clique, nossa curtida, nosso referendo, e assim acabamos achando que ele vale alguma coisa e, afinal, que ele vale muito mais do que vale. Esse mecanismo para produzir um “a-mais-de” gozo como nossas esperanças faz muito mal. Venho de uma educação germânica e concordo com a Eliane Brum quando ela escreve uma crônica, sobre criação de filhos, com um título autoexplicativo: Você Não Merece Nada. Ou seja, não tem nada me esperando no fundo do túnel, nenhum pote de ouro, nenhum destino grandioso, por isso mesmo o arco-íris é tão bonito. Desejar com esperança é fácil, quero ver é não ter esperança alguma e mesmo assim desejar. Otimismo desesperançado, pode ser este o nome disso.
Bravo!, janeiro de 2019
© Almir de Freitas