Nos contos de Um Toque de Limão, Julian Barnes mostra como conciliar o rigor da técnica com a grandeza do inevitável na vida
Para usar uma expressão de Julian Barnes, não há de fato um “cálculo exato” em literatura. Nada que se possa colocar na conta do tradicional ou do experimentalismo, do puramente imaginário ou da ficção combinada com a história — esse tudo um pouco que diz respeito a sua obra. Apesar da unidade temática, Um Toque de Limão traz aquela diversidade imune a dogmatismos como “inventividade”: na literatura britânica da estirpe de Barnes, o bom (a técnica) e o belo (a ideia) são as únicas regras.
É essa “liberdade vigiada” que permite ao escritor ir com naturalidade do humor à melancolia, dos temas clássicos às formas menos ortodoxas de narrar. Ele pode, por exemplo, iniciar o livro com uma sátira sobre o passar dos anos descrita pela relação neurótica de um homem com seus barbeiros (Uma Breve História do Estilismo de Cabelo), e terminar, em pequenos capítulos, com a ironia amarga do compositor finlandês Jean Sibelius (1865-1957) em O Silêncio: “Minha orquestração é melhor do que a de Beethoven, meus temas são melhores. Mas ele nasceu num país vinícola, e eu numa terra onde leite coalhado canta de galo. Um talento como o meu, para não dizer genialidade, não pode ser alimentado com coalhada adoçada”.
Para usar uma expressão de Julian Barnes, não há de fato um “cálculo exato” em literatura. Nada que se possa colocar na conta do tradicional ou do experimentalismo, do puramente imaginário ou da ficção combinada com a história — esse tudo um pouco que diz respeito a sua obra. Apesar da unidade temática, Um Toque de Limão traz aquela diversidade imune a dogmatismos como “inventividade”: na literatura britânica da estirpe de Barnes, o bom (a técnica) e o belo (a ideia) são as únicas regras.
Barnes mostra ainda como superar o prosaico nos aspectos mais banais da terceira idade — mas nem por isso dispensáveis: a idealização do passado diante da inadequação a um mundo cada vez mais estranho (As Coisas de que Sabemos e Saber Francês); a ranzinzice (Vigilância) e as manias da velhice (Casca de Árvore e Apetite). E sexo também, por que não? — caso de O Cercado das Frutas. Em muitos desses contos, essas características se cruzam, ora em primeiro, ora em segundo plano, em narrativas que nunca deixam de estar, de um jeito ou de outro, sob a sombra da perda, do amor e da morte.
É essa sombra, aliás, que marca duas belíssimas histórias de Um Toque de Limão: a do amor nunca concretizado do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883) por uma jovem atriz (O Reviver) e a da paixão de uma vida inteira, mútua e silenciosa, entre Anders Bodén, um simples serralheiro, e Barbro Lindwall, a mulher do farmacêutico de uma cidadezinha sueca (A História de Mats Israelson). Em encontros casuais, Bodén conta-lhe os segredos da madeira e a riqueza das minas de cobre de Falun. Ali, segundo a lenda, uma velha teria reconhecido o corpo perfeitamente conservado de seu antigo noivo, Mats Israelson, 49 anos depois de seu desaparecimento. “Eu gostaria de visitar Falun”, dissera a sra. Lindwall. Uma senha mais perigosa, para Bodén, do que se ele dissesse (num outro mundo, numa outra vida): “À noite, sonho com Veneza”.
É a vida que podia ter sido e não foi: poucos temas são tão clássicos quanto esse. Ainda assim, não há nada que se assemelhe, na carpintaria desses contos, a qualquer outra coisa que já tenha sido escrita sobre o assunto, que se encaixe numa equação predeterminada. Um Toque de Limão tira sua força não apenas de um tema bem escolhido, mas também do talento de um escritor que sabe como conciliar a sua inegável técnica com a capacidade de explorar a grandeza do que é inevitável na vida de todos.
BRAVO!, junho de 2006
© Almir de Freitas