Dez anos após receber o prêmio da Academia Sueca, José Saramago volta a lançar um ótimo livro, aos 86 anos de idade
O Nobel muda as coisas de muitas maneiras”, disse certa vez o escritor canadense Saul Bellow. “Conheço gente, como John Steinbeck, para quem o prêmio foi o beijo da morte.” Nobel de Literatura em 1976, Bellow se referia, naturalmente, à morte para o ofício de escrever, com os laureados ameaçados de atingir uma espécie de limiar: obtida a mais importante honraria do mundo, não haveria muito mais a fazer. Como se escrever não fizesse mais sentido, restaria, na condição de “pessoa oficial” (na expressão de outro Nobel, a polonesa Wislawa Szymborska, em 1996), participar de incontáveis e intermináveis mesas-redondas, conferências, sessões de autógrafos etc. Haveria, ainda, a tentação de colocar a fama a serviço de alguma causa política, coisa que a Academia Sueca — que costuma valorizar essas questões extraliterárias nas suas escolhas — aprovaria.
Em junho de 1999, confrontado com a frase de Bellow, José Saramago torceu: “Oxalá não seja”, disse, em uma entrevista concedida à revista BRAVO!, durante uma viagem de trabalho ao Brasil. Na ocasião, fazia apenas alguns meses que ele havia se tornado o primeiro escritor de língua portuguesa a receber um Nobel de Literatura. “Este é o meu ano de miss universo”, brincou, ainda que se queixasse da absoluta falta de tempo para escrever diante da multiplicação de compromissos que o fato, extraordinário, havia provocado. “Simplesmente não posso, não poderia e não poderei continuar nesse ritmo… Então seria mesmo o beijo da morte”, afirmou na época.
Seria? Dez anos depois do Nobel, concedido a ele em outubro de 1998, Saramago volta ao Brasil neste mês para lançar mais um livro, A Viagem do Elefante, classificado pelo autor de “conto”, embora tenha “exatamente 258” páginas, como ele próprio frisa em nova entrevista a BRAVO!, concedida por e-mail. No “conto”, Saramago ensaia uma volta ao romance histórico, com o enredo que descreve a insólita caravana que acompanhou o elefante salomão (assim mesmo, em minúscula) pela Europa no século 16. Lembra, em muito, momentos de Memorial do Convento, talvez sua melhor obra. Engenhoso e engraçado, o livro exibe ainda a maestria de um escritor que se dispôs a pagar o preço de buscar a clareza do pensamento no excesso; a construir uma prosa cujo ritmo compassado, intercalando fatos e diálogos, tem uma capacidade singular tanto de atrair admiradores quanto de semear detratores.
Além do lançamento de A Viagem do Elefante, Saramago experimenta um momento de popularidade raro para qualquer autor. Até meados de outubro, o filme Ensaio sobre a Cegueira, baseado na obra homônima do escritor, já tinha sido visto por quase 600 mil pessoas só no Brasil — o dobro do que o diretor, Fernando Meirelles, projetava antes da estreia, em setembro. O sucesso ajudou a reconduzir o romance às listas de mais vendidos. Relançado pela Companhia das Letras em maio, o livro teve 40 mil exemplares acrescentados a uma já assombrosa vendagem de 220 mil desde o seu lançamento, em 1995.
Para completar este novo mês de “miss universo” no Brasil, Saramago será tema de uma grande exposição no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, chamada de A Consistência dos Sonhos. A mostra, que contará com a presença do escritor, reunirá manuscritos, vídeos, fotografias, gravações e primeiras edições, totalizando um acervo de mais 500 peças que abrangem toda a vida desse português nascido em 1922 na minúscula freguesia rural de Azinhaga, na Província do Ribatejo, lugar que ele trouxe à luz no livro Pequenas Memórias (2006), outra bela obra de sua vida pós-Nobel.
CUBA E INTERNET
A jornada de Saramago além do rubicão da Academia Sueca não esteve, contudo, imune a acidentes e imprevistos. Já no primeiro romance dessa nova fase, o escritor parecia se encaminhar para o destino aziago de tantos notáveis — além de Steinbeck, também os americanos William Faulkner (1949) e Ernst Hemingway (1954), por exemplo, tiveram a medalha e o diploma recebidos em Estocolmo transformados em lápide e testamento literário. Com A Caverna (2000), Saramago ressurgiu como sombra de si mesmo: argumento, personagens e acabamento, claramente inferiores, potencializavam os defeitos que os críticos de sua obra até ali apontavam. Maniqueísta, panfletário e escrito numa prosa pedregosa, o livro era chato, simplório e difícil de ler.
Saramago nunca escondeu suas convicções políticas e ateístas em suas obras — mas ele havia conseguido transformar essas características numa distinção literária. Contudo, na alegoria do Centro — misto de condomínio de luxo e shopping center que encerra a vida das pessoas em A Caverna —, só restava o tosco manifesto pré-industrial em favor de oleiros, contra o progresso capitalista que aliena a todos, o tal que, a exemplo da caverna de Platão, nos impede de enxergar “a verdade”.
Diante desse cenário desolador que se anunciava, é ainda mais notável que o homem Saramago tenha se disposto, já devidamente galardoado, a rever (flexibilizar, ao menos) algumas de suas posições — ainda mais numa idade em que a maioria dos homens opta pelo imobilismo. Ele está longe de abdicar de suas crenças, mas causou rebuliço entre os camaradas do Partido Comunista Português ao romper publicamente com Cuba, em 2003. Diante da execução sumária de três cubanos que haviam sequestrado uma balsa para tentar chegar aos Estados Unidos, o escritor se pronunciou: “Cuba não ganhou nenhuma batalha heróica fuzilando esses três homens, mas perdeu minha confiança, quebrou minhas esperanças, traiu meus sonhos”, escreveu num breve texto publicado no jornal espanhol El País.
Tão surpreendente quanto, talvez, tenha sido a iniciativa de Saramago em aderir à blogosfera. Em setembro último, o defensor das terrinas de barro e crítico das louças de plástico de A Caverna colocou no ar o Caderno de Saramago. O escritor posta praticamente um único (e imenso) texto por dia, todos fechados para comentários. Como nem tudo pode mudar, no dia 16 de outubro passado, por exemplo, publicou um texto com o título Deus como Problema. Que assim, inconfundivelmente, principia: “Se eu próprio pertencesse ao grémio cristão, o catolicismo vaticano teria de interromper os espectáculos estilo cecil b. de mille em que agora se compraz para dar-se ao trabalho de me excomungar, porém, cumprida essa obrigação disciplinária, veria caírem-se-lhe os braços”.
Como se vê, nem tudo pode ser mudado. Mas o que Saramago oferece, nesse mau humor espirituoso numa grafia que está a ponto de ser extinta pela reforma ortográfica, é o melhor que o escritor poderia ter conservado. Ainda mais militando em um meio tão inusitado para um homem que, no dia 16 deste mês, completa 86 anos.
A IDADE E A MORTE
Saramago, é preciso dizer, está acostumado a vencer o tempo. Depois de estrear desastrosamente na literatura aos 25 anos, com o romance Terra do Pecado (1947), colecionou durante três décadas uma série de insucessos, principalmente com livros de poesia. Em 1977, aconteceu de lançar um novo romance, Manual de Pintura e Caligrafia, ao qual se seguiram Levantado do Chão (1980), alguns contos e peças de teatro e, por fim, o megassucesso Memorial do Convento (1982). Tinha exatamente 60 anos de idade.
Dez anos depois, já tinha publicado O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989) e O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), livros que o conduziram — não sem polêmica — à condição de maior escritor da língua portuguesa. Até hoje são renhidas as disputas entre os partidários de Saramago e os de António Lobo Antunes, também eles desafetos mútuos. No mundo da futricas literárias, o autor de Os Cus de Judas (1979) e Manual dos Inquisidores era, para os seus defensores, o verdadeiro merecedor do Nobel.
Em 1988, o viúvo Saramago casou-se com uma entusiasmada jornalista espanhola, María del Pilar del Río Sánchez, que, dois anos antes, o havia procurado após se encantar com a visionária Blimunda, o soldado maneta Baltasar e o padre voador Bartolomeu Lourenço, personagens de Memorial do Convento. Mais uma vez, a idade não foi problema: ela estava com 38 anos e ele, com 66. Foi ela quem teve a ideia, em 1992, de morar em Lanzarote, uma ilha vulcânica de 860 km2 no arquipélago das Canárias, distante pouco mais de 100 km da costa africana. Na ocasião, Saramago subestimou-se. “Viver em Lanzarote nesta altura da vida?” Mas acabou se convencendo: tinha 70 anos quando promoveu mais essa reviravolta.
Pilar del Río foi, sem dúvida, um acontecimento crucial na vida de Saramago, coincidentemente, nos dez anos que antecederam o Nobel. Dona de opiniões fortes, ela por vezes é tão ou mais linha-dura que o marido nas questões políticas. Desde 2007, Pilar está à frente da Fundação José Saramago, para, segundo declaração de princípios do escritor, “lutar por grandes e pequenas causas”, com ênfase nos direitos humanos e nos “problemas do meio ambiente e do aquecimento global do planeta”.
Durante uma entrevista publicada em setembro de 2007 no jornal The New York Times, Saramago declarou à mulher: “Se eu tivesse morrido antes de conhecer você, Pilar, eu teria morrido me sentindo muito mais velho”. Talvez não por coincidência, A Viagem do Elefante tem a seguinte dedicatória: “A Pilar, que não deixou que eu morresse”. Segundo ela mesma conta, num texto publicado no blog da Fundação, Saramago temeu não conseguir concluir o livro, debilitado gravemente por uma forte pneumonia no fim de 2007, da qual levou meses para se recuperar.
Na soma de todas as suas vidas e de seus renascimentos, em todas as reviravoltas de uma trajetória rara, Saramago conseguiu driblar o fim a que parecia destinado nos papéis de escritor fracassado, de viúvo sessentão, de velho obsoleto de opiniões antiquadas e, finalmente, do escritor tocado pela fúnebre Academia Sueca. Como Bellow — que à maldição acrescentou o antídoto, ao criar depois do prêmio obras-primas como Ravelstein e ao ter um filho aos 84 anos —, Saramago foi bem-sucedido na decisão de escolher, ele mesmo, “o próprio beijo da morte”, qualquer que seja ele.
Leia entrevista com José Saramago
BRAVO!, outubro de 2008
© Almir de Freitas