As duas aventuras de Moby Dick

De fracasso de crítica à obra-prima, livro tem uma trajetória tão fascinante quanto a história da caça à baleia criada por Melville

Moby Dick, Herman Melville. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza. Cosac & Naify

Em um texto que ficou famoso, Jorge Luis Borges definiu Moby Dick como um “romance infinito” — uma narrativa que, “página a página, se amplia até superar o tamanho do cosmos”. Quem já enfrentou as quase 600 páginas da extravagante caça à baleia branca empreendida pelo obsessivo capitão Ahab a bordo do barco Pequod, há de concordar com o escritor argentino. Mas não é apenas por conta da extensão física do épico do americano Herman Melville que se pode vislumbrar o infinito. A vastidão é encontrada na quantidade de interpretações que o romance foi capaz de engendrar, tão ou mais extravagantes que a própria obra (clique aqui para ler quatro delas). E a história acidentada de Moby Dick, de sua inspiração à futura popularidade que conquistou no século 20, parece não pertencer ao tempo e à lógica regulares dos mortais.

O romance, que ganha agora nova tradução no Brasil, foi a grande aposta da vida de Melville. Quando foi publicado em 1851 (com o título Moby Dick ou A Baleia), o escritor tinha 32 anos e uma sólida — ainda que irregular — carreira literária. Depois de errar por terras distantes como marujo, em navios de pesca e militares, o autor contou parte de suas andanças em cinco livros, publicados em meteóricos quatro anos: Typee (1846) e Omoo (1847), narrativas que lhe deram prestígio junto a um público interessado em aventuras ultramarinas; e Mardi (1849), Redburn (1849) e White-Jacket (1850), narrativas, igualmente autobiográficas, com as quais experimentou os primeiros amargores da crítica. A essa altura da vida, Melville estava casado, com um filho pequeno, e sua vida financeira não era das melhores.

Para se erguer da má fase, tinha ainda guardada dos anos de juventude a experiência em um baleeiro e, na cabeça, um punhado de histórias populares na época. De um lado, Melville encontrou a inspiração para a natureza maligna da baleia no Leviatã, o monstro marinho mencionado na Bíblia contra o qual Deus se levantará; de outro (e de forma mais circunstancial), evocou a tragédia do baleeiro americano Essex, naufragado no Pacífico em 1820. Na ocasião, um cachalote — a mesma espécie de Moby Dick — destruiu o navio, deixando os sobreviventes à deriva por três meses, um período em que tiveram de recorrer ao canibalismo. A história, publicada em 1821 pelo imediato do navio, Owen Chase (no Brasil, ela pode ser conferida no livro A Vingança da Baleia, de Nathaniel Philbrick), já havia influenciado, por exemplo, Edgar Allan Poe, que recriou o clima de pesadelo a bordo e em alto-mar em O Relato de Arthur Gordon Pym (1838), o único romance que publicou.

Para Melville, o mais interessante do episódio encontrava-se no depoimento do capitão do Essex, George Pollard Jr., que afirmou que a baleia parecia ter desferido um ataque “calculado” contra os pescadores que a perseguiam. Essa ideia de um animal vingativo estava presente em outro relato, que teria sido crucial para o nome da baleia de Melville: Mocha Dick: Or the White Whale of the Pacific(Mocha Dick ou a Baleia Branca do Pacífico), publicado em 1839 na revista literária Knickerbocker por um certo J. N. Reynolds. Dick, um nome comum, identificava um cachalote branco, lendário por sua fúria e resistência, que era avistado perto da ilha de Mocha, no litoral do Chile — até ser morto, em 1839, crivado de arpões. Tais nomes eram comuns na época, e alguns — como “New Zealand Jack” (Jack da Nova Zelândia) e “Timor Tom” (Tom do Timor) — são mencionados pelo próprio Ishmael, o narrador de Moby Dick.

O romance chegou em outubro daquele 1851 às livrarias da Inglaterra e, no mês seguinte, às dos Estados Unidos. Feliz da vida, com £ 150 de adiantamento do seu editor inglês no bolso, Melville comemorou o lançamento com o também escritor e amigo Nathaniel Hawthorne, a quem tinha dedicado o livro e de quem havia recebido todos os incentivos — até para os seus aspectos mais extravagantes, como as dezenas de páginas dedicadas ao estudo dos cetáceos, as técnicas de pescaria e a defesa das glórias da classe baleeira (“todas as velas, as lamparinas e as tochas que queimam por este mundo”, diz Ishmael, “diante de tantos santuários, queimam por glórias nossas!”). Nenhum dos dois, contudo, podia imaginar a catástrofe que viria.

MORTE E RESSURREIÇÃO

Poucos livros foram recebidos com tanta violência pela crítica quanto Moby Dick. É, talvez, o caso de maior insensibilidade de que se tem notícia na história da literatura. No London Athenaeum, o afamado crítico Henry Chorley chamou o livro de “absurdo”, escrito num “inglês maluco”; no New York Albion, William Young afirmou que o romance era “um perfeito fracasso”; e um resenhista anônimo do United States Democratic Review chegou a dizer que Melville devia ter sido menos “vaidoso” e “se contentado com um ou dois livros”. E finalizava: “Se algum dos nossos leitores quiser encontrar exemplos de má retórica, sintaxe intrincada, afetação e inglês incoerente, tomamos a liberdade de recomendar este precioso volume do sr. Melville”.

Houve alguns elogios, é verdade, mas o romance foi arrastado para baixo, numa onda em que a virulência das críticas negativas sobrepujava os argumentos das positivas. A editora americana Harper & Bros havia colocado 2.915 exemplares nas livrarias, dos quais cerca de 1.500 haviam sido vendidos nas duas primeiras semanas; dez semanas depois — depois das críticas — o número de vendas não chegava a 500. E parou aí por décadas.

O tombo foi proporcional ao investimento. A partir de Moby Dick, a carreira literária de Melville nunca mais foi a mesma. Deprimido, escreveu Pierre ou as Ambiguidades (1852), seu primeiro romance fora dos temas náuticos. A trama confusa e sombria de um homem injustiçado foi uma catástrofe ainda maior, afastando de vez seu antigo público leitor. Mesmo quem tinha visto qualidades em Moby Dick começava a mudar de opinião. A partir daí, o escritor investiu em narrativas mais curtas — como Bartleby, o Escrivão (1853). A extraordinária novela sobre o escrivão de Wall Street que reagia com a frase “prefiro que não” diante de qualquer situação foi ignorada em sua época, num novo exemplo de insensibilidade crítica. A imagem negativa de Melville se prolongaria até sua morte, em 1891. No obituário publicado sobre o escritor, o New York Times grafou seu nome como “Henry” Melville.

A história de Moby Dick, contudo, mal tinha começado. Quase que da mesma forma como a reputação de Melville tinha afundado, ela começou a emergir nos anos 20 do século passado. Num texto (que acompanha a edição brasileira) publicado em 1923, o inglês D. H. Lawrence, o autor de O Amante de Lady Chaterley, se detém na estranha e maravilhosa dualidade de Moby Dick: ao mesmo tempo em que era uma história realista de caça à baleia — um autêntico relato de marinheiros —, era também, segundo escreveu, uma “viagem da alma”. O próprio romance era explícito a respeito dessa ambiguidade: de um lado, o narrador, Ishmael, dizia que Moby Dick não poderia ser entendida como “hedionda e insuportável alegoria”; de outro, Ahab, cego em sua vingança contra a baleia que tinha lhe arrancado a perna, afirmava que “todos os objetos visíveis não passam de máscaras de papelão”.

“E o que, em nome da fortuna”, perguntava Lawrence, “é a baleia branca?”

De certo modo, essa foi a pergunta que serviu de combustível para a redescoberta de Melville, numa história que foi ganhando capítulos cada vez mais inusitados. Em 1924, a publicação póstuma de Billy Budd, escrito nos últimos anos de vida de Melville, chamou a atenção de outros autores. O poeta W. H. Auden e o escritor E. M. Forster viram na tragédia do belo marujo Billy, vítima do invejoso mestre-de-armas Claggart, o pano de fundo de uma relação homoerótica — e não demorou muito para a mesma leitura ser aplicada a Moby Dick, na relação entre Ishmael e o arpoador canibal Queequeg. A teoria foi desenvolvida posteriormente pelo crítico americano Leslie Fiedler no clássico Amor e Morte no Romance Americano, que tomava ainda a caça à baleia levada a cabo por Ahab como uma mortal história de amor.

Por sua vez, a reflexão sobre o mal, presente já na análise moralista de Auden, ganhou impulso e outro direcionamento a partir da Segunda Guerra Mundial. O paralelo entre Hitler e Ahab, que arrasta a tripulação do Pequod para a destruição em sua loucura, foi inevitável. O escritor e filósofo francês Albert Camus viu em Moby Dick o mito da luta do homem contra o mal e a lógica irresistível que faz com ele se volte “contra a criação e o criador, depois contra seus semelhantes e por fim contra si mesmo”. Já o terror causado pela “brancura da baleia”, tema de um célebre capítulo do romance, também foi explorado por outros autores — como o escritor e artista plástico David Batchelor, no recentemente lançado no Brasil Cromofobia, um estudo sobre o medo da cor nas culturas.

Hoje, não faltam análises freudianas de Ahab; leituras junguianas sobre o arquétipo da baleia; estudos fenomenológicos sobre o mundo de Ishmael; monografias sobre New Bedford, a capital da pesca baleeira no século 19; entre tantas e bizarras interpretações. Ao mesmo tempo em que a obra ganhava a crítica e a imaginação dos acadêmicos, Moby Dick reconquistava o público — e ganhava outros. Nesse tempo, os editores descobriam que a história — surpreendentemente — era irresistível para crianças. Só no Brasil existe em catálogo uma dúzia de edições adaptadas para o público infanto-juvenil. Nos anos 60, Moby Dick chegou a ressurgir boazinha em desenho dos estúdios Hanna Barbera como companheira de aventuras dos garotos Tom e Tub — além da foca Scooby.

Poucos livros são como Moby Dick — e pode-se dizer, com segurança, que nenhum outro livro percorreu um caminho tão tortuoso, rico e múltiplo, a ponto de se perder em infinitas interpretações. Não à toa, Borges definiu como um “labirinto sem centro” esse cosmos para onde o romance se projeta. “É claro que [Moby Dick] é um símbolo. De quê?”, volta a perguntar D. H. Lawrence. Desta vez, ele mesmo responde: “Duvido que mesmo Melville soubesse com precisão. Isso é o melhor de tudo”. 

BRAVO!, maio de 2008
© Almir de Freitas