Bela e bruta natureza

Em A Desumanização, Valter Hugo Mãe se aventura nas paisagens e nas gentes de um lugar em que é “preciso estar preparado para a substituição poética das coisas”

A Desumanização, Valter Hugo Mãe. Cosac & Naify

A morte de uma menina de 11 anos deixa a irmã, gêmea, sozinha. “Tudo em meu redor se dividiu pela metade”, diz Halla, a sobrevivente, única criança de um povoado nos majestosos fiordes do oeste da Islândia. Narradora de “A Desumanização”, ela é a voz com que Valter Hugo Mãe se aventura nas paisagens e nas gentes de um lugar em que, diz-se no romance, é “preciso estar preparado para a substituição poética das coisas”.

É bem por conta disso que a vida partida da pequena Halla pertencerá a um mundo de ambivalências: a beleza e o horror, o encantado e o terrível, a vida e a morte. E, sobretudo, a linguagem e a bela, mas bruta, natureza. Nesse cenário nórdico, protestante, o difícil é não misturar os canais e tropeçar nos barroquismos portugueses. Há cuidados a tomar.

GENTE INDEPENDENTE

Não é segredo que o Mãe recorreu às referências de “Gente Independente”, romance do islandês Halldór Laxness (1902-1998), Nobel de Literatura em 1955 e herói nacional num país que ama os livros. Elas começam na epígrafe, uma citação do livro (“um homem não é independente a menos que tenha a coragem de estar sozinho”), e se estendem à narrativa. Como se o estrangeiro se entregasse, inseguro, às indicações de um guia local.

Tanto A Desumanização quanto Gente Independente contam com uma menina magrinha, um pai que gosta de fazer versos, uma mãe cronicamente doente – todos dispendendo a vida numa charneca. Ao redor, gente “sozinha por valentia e casmurrice, e por estupefação.” Mas se Laxness traduz a dureza da vida na luta teimosa contra a natureza rude, o português procura emprestar outros significados a essa mesma rudeza. Trata-se, como ele já anunciou, de substituir as coisas pela poesia.

Que é dura. Halla engravida aos 12 anos do tolo do povoado, o feio Einar; o pai, “um nervoso sonhador”, se entrega à apatia; a mãe, louca de tristeza, autoflagela-se, cortando-se. Tudo é solidão, mesquinharia, morte.

AMBIVALÊNCIAS

Dos abismos individuais chega-se à brutalidade do mundo exterior. E vice-versa: a boca escura dos vulcões, o gosto dos tubarões podres, o inóspito das montanhas, as andorinhas zangadas, as ervas secas do chão. Tudo encontra equivalência nas dores e pequenos contentamentos de Halla. E se é esse jogo de espelhos que dá força ao romance, ele é também responsável pela sua fraqueza: repetido à exaustão, o recurso acaba sendo previsível e, algumas vezes, vazio.

Ainda assim, é preciso reconhecer que, ao menos tecnicamente, faz sentido. Na “invenção do que já estava inventado”, na paisagem transformada em texto, as palavras são as únicas que podem dar humanidade à vida, à natureza e à morte. Seguindo essa lógica inescapável, Valter Hugo Mãe confronta sua prosa com a “rocha tremenda da Islândia”. E faz, como ele diz, sua “esquisita mas sincera” declaração de amor aos magníficos fiordes do oeste islandês.

Folhapress, abril de 2014
© Almir de Freitas