Em seu novo livro, Rubens Figueiredo desdobra um personagem em vários para dar conta da complexidade do mundo e da própria literatura
Diversidade é uma palavra cara ao que se entende por civilização: a sua “aceitação”, como se diz, soa elegante em um mundo onde se cultivam valores como tolerância, generosidade e solidariedade. Claro que no dia-a-dia as coisas são um pouco mais complicadas, e qualquer um sabe que essa equação moral genérica não resiste muito diante de um ego ferido ou de uma fechada no trânsito. O conflito está aí para quem quiser ver, e a ficção muitas vezes patina no óbvio ao tentar representá-lo. Em Contos de Pedro, de Rubens Figueiredo, esse estado de confronto generalizado também está presente, mas há algo mais: a impressão que se tem é de que nem o mundo é tão diverso assim, nem o conflituoso se opõe necessariamente ao civilizado.
Em oito dos nove textos, os protagonistas têm o nome indicado no título do livro. Pedro é tanto o porteiro humilde cegado pelo fervor religioso e pelo extraordinário quanto o escritor que vende sua alma, lotado em um órgão corrupto do governo; é o menino que sai pelas ruas da cidade a entregar as empadas do pequeno negócio de família e também o ex-garimpeiro que vira guia turístico no alto de uma montanha em algum rincão do país. São vítimas da miséria, da violência urbana, das brigas domésticas; se batem contra o ressentimento, o medo e a própria ignorância. Nessa multiplicidade de cenários, Pedro é uma legião, mas também é um só. É chato admitir, mas não há nada de essencial que os diferencie, a não ser a posição que ocupam no tabuleiro nessa guerra permanente.
Na representação literária dessa unidade essencial, Contos de Pedro se vale de padrões que se repetem ao longo das narrativas. Além das situações abertas de confronto, tradicionais de uma prosa mais realista, aqui e ali vão se encontrar deformidades ou ferimentos — a perna gangrenada de um mendigo, o dedo cortado de um cozinheiro e de uma instrumentista, o curativo na mão de uma moça paquerada por um velho. Outros parecem aleatórios, como a presença constante de animais ou tipos apegados à solidez de construções de alvenaria erguidas por eles mesmos. São todos elementos simbólicos que não só aproximam os personagens em situações circunstanciais, como também abrem caminho para que Contos de Pedro apresente seu grande diferencial.
LUTAR COM PALAVRAS
Porque não se trata apenas de “sobreviver” nesse ambiente hostil — essa outra idéia que não seria mais que mero prolongamento daquelas obviedades fatais para a ficção. No conjunto dos contos do livro, o que se evidencia é o esforço de apreensão dessa realidade — um esforço tanto para o autor quanto para os seus personagens. É uma luta que se trava com palavras, com a combinação dos mesmos personagens, anseios e temores em contextos distintos.
Nesse sentido, a própria literatura é conflito — e é bom que assim seja. Não há assertiva, fórmula pronta nem equação moral genérica que dê conta da complexidade do mundo: qualquer civilização, por melhor que seja, inclui unidade e diversidade, pacto e confronto. Em suas contradições, os vários Pedros de Rubens Figueiredo mostram que sempre há algo mais a ser dito sobre tudo o que nos cerca, ainda que nem eles nem ninguém saiba exatamente o quê.
BRAVO!, abril de 2006
© Almir de Freitas