À beira da morte, presa a uma cama de hospital, uma mulher imagina-se vagando nua pelas ruas de São Paulo, cruzando com os personagens habituais da cidade, de mendigos a executivos.
Narrado em um longo monólogo, o percurso íntimo, extremo, é povoado também de outras vozes, memórias e referências –literárias, filosóficas e mitológicas– que não acabam mais.
Muito sinteticamente, é este o universo de “Os Piores Dias de Minha Vida Foram Todos”, título que vem a calhar para completar a sinopse do novo livro de Evandro Affonso Ferreira.
Terceiro volume de uma trilogia, ele se assemelha em tudo aos seus predecessores –”Minha Mãe se Matou Sem Dizer Adeus”, de 2010, e “O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam”, de 2012.
No conjunto, ilustram de saída um marco do romance, em que reiteração e recorrência, assumidos, se espalham pelos temas, pela estrutura ficcional e pelos recursos narrativos.
PRECISÃO
Com regularidade, o monólogo oscila entre a consciência da narradora sobre sua condição; as ruas; a justificativa do delírio; a lembrança de um grande amigo; e também ao seu paradigma mais geral –Antígona, a filha de Édipo que preferiu ser enterrada viva a deixar o corpo do irmão insepulto.
Nessa fórmula de precisão quase matemática, não existe desvio possível. A reiteração se aplica, inclusive, ao léxico e ao estilo particulares: nomes reforçados por pronomes; enfileiramento de substantivos e adjetivos similares; frases, palavras, expressões marteladas à obsessão.
EQUAÇÃO
Se a metáfora das exatas é aceitável, “Os Piores Dias”¦” é uma equação que se faz inteiramente de hipérboles, no que elas têm –no sentido geométrico ou retórico– de fechado, previsível e exagerado.
Lá pelas tantas, nada surpreende: a quantidade de vezes em que a expressão “in totum” aparece no monólogo; as construções como “súbita dor cruciante tremura exasperação sangradura abortífera”; a frequência com que, judiciosa, a narrativa nomeia a “parvoíce” e “patetice” das pessoas ao redor.
Em certo sentido, “Os Piores Dias”¦” está cheio de elementos para se defender diante da banca.
Mas, em muitos outros, não resiste à realidade vulgar que, a propósito, ele faz questão de repelir.
No varejo das coisas, reiteração e ênfase meramente formais se transformam em pura repetição, em insistência. Coisas que, com raríssimas exceções, resultam em aborrecimento.
Evandro Affonso Ferreira já disse que não se importa com a falta de leitores para seus livros. E isso sempre em referência à avaliação de que sua prosa, hermética, se contrapunha a uma literatura de consumo fácil.
Na ponta do lápis, a avaliação é imprecisa: no universo reduzido de público de boa literatura, as referências eruditas dos livros de Evandro não são tão difíceis assim. O mesmo se aplica ao vocabulário tortuoso e à sintaxe.
Incluir na conta da falta de leitores a multidão que prefere os best-sellers (ou livro nenhum) é promover uma distorção estatística.
Vale, sim, considerar outra hipótese. A de que, depois de tantos ensaios experimentalistas, a obra de Evandro tenha se encantado por uma espécie de neobeletrismo. Nas suas referências clássicas, no vocabulário culto, no orgulhoso universo reduzido de leitores.
Folha de S.Paulo, outubro de 2014
© Almir de Freitas