Jogo de desorientação marca estreia do jornalista Luis Erlanger na ficção

“Ninguém lê um livro. Lê-se através dos livros.” Dita pelo psicanalista Bernardo Gennus, a frase serve de desafio ao leitor de “Antes que Eu Morra”, estreia do jornalista Luis Erlanger, da TV Globo, como ficcionista.

Bernardo está morto. Na introdução do romance, explica que deixou instruções para que seu advogado cuidasse da publicação das páginas que se seguem: o relato transcrito das sessões de um paciente sem nome, cuja história resultará num thriller que mescla política, crime, sexo e drogas.

Paciente que, adiante veremos, também pode estar defunto àquela altura. Não se sabe bem. E o que não se sabe com exatidão será decisivo no que se pode ler através de “Antes que Eu Morra.”

Generoso, Bernardo refere-se a seu “personagem” como “agradável” e “divertido”. A esse respeito, dificilmente existirá consenso.

Neurótico-obsessivo, o paciente sem nome alterna os fatos de sua história com uma infinidade de informações enciclopédicas.

Alonga-se, entre outros assuntos, nos tipos de tração das máquinas de costura, na história dos elevadores, no sucesso evolutivo das formigas, do eventual valor terapêutico do esperma…

Suas piadas quase nunca têm graça, seus trocadilhos são de gosto duvidoso. Volta e meia, entremeia o discurso com clichês e expressões como “no way”, “I guess”, “disgusting”, “na night”, “who knows?”.

Mas talvez –e isso é importante– não seja mesmo o caso de confiar nas avaliações de Bernardo, que também diz acreditar na história rocambolesca que lhe é contada.

CONTRADIÇÕES

Nela, não faltam contradições. O paciente anônimo diz, por exemplo, que sofre de uma “surdez galopante”, mas consegue ouvir claramente “os dois estrondos secos sequenciais” de um corpo caindo no fundo de um corredor.

Conta que está perdendo a visão, mas enxerga metade de uma carreira de pó e um canudo de acrílico no quarto escuro em que, já metido em encrenca, foi amarrado.

À distância, enxerga também a anilha amarela do charuto de um cubano que está prestes a matá-lo a mando de um senador, filho de ex-guerrilheiro e idealizador de um programa que leva o nome de Bolsa Sorriso.

Não há como saber o que é real e o que é invenção. Tudo pode não passar de fantasia de um mitômano exibicionista; ou, ainda, criação do próprio Bernardo, que nem morto deve estar.

Nesse jogo de desorientação, aos poucos vai se destacando o que é menos duvidoso. Não é difícil concordar com o pessimismo cínico do protagonista, que vê a espécie humana caminhando para a entropia e o Brasil, célere em direção à decadência, sem, no entanto, jamais ter atingido o apogeu.

Se “Antes que Eu Morra” tivesse uma moral, poderia ser a ideia de que, num mundo atolado em informações, não sabemos, no fim, nada do que realmente importa. Resta aí um mal-estar da civilização, um anti-humanismo inescapável, uma sadia iconoclastia cultural. É possível. Ou não. Who knows?

Folha de S.Paulo, abril de 2014
© Almir de Freitas