Em A Noite da Espera, primeiro volume da trilogia O Lugar mais Sombrio, Milton Hatoum escreve o romance de formação de um país
Se é verdade que o romance nasceu para atender aos anseios do homem comum de projetar sua própria imagem no mundo, esse gênero — individualista por natureza, digamos assim — achou no Bildungsroman uma das suas melhores expressões. Cunhada pelos românticos alemães no século 18, o termo designa os romances de formação — aqueles cujas tramas se centram preferencialmente na trajetória (tortuosa, naturalmente) de um personagem a caminho da vida adulta.
Segredo nenhum em dizer de cara que a Noite da Espera — O Lugar mais Sombrio, primeiro volume de uma trilogia iniciada agora por Milton Hatoum, é um herdeiro dessa tradição. Uma longa linhagem que inclui títulos que vão do (inaugural) Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister (1795–1796), de Goethe, a O Encontro Marcado (1956), de Fernando Sabino, passando por A Educação Sentimental (1869), de Flaubert — livro que aparece como uma das leituras do jovem Martim em A Noite da Espera, num dia importante para a história.
No romance de Hatoum, dois tempos: um que se inicia em fins de 1967, no começo dos anos mais fechados da ditadura militar; o outro, dez anos depois, com Martim no exílio em Paris, tentando juntar os cacos de uma família implodida no mesmo passo em que o país abria os ralos da entropia. Ele tinha 16 anos quando a mãe, uma professora de francês na rua Tutoia, em São Paulo, se apaixona por um artista plástico e praticamente desaparece de sua vida, por motivos não totalmente esclarecidos. A Martim, abandonado, resta ir viver com o pai — um engenheiro da Poli carola e reacionário — que se muda para a Asa Norte, em Brasília.
O tal individualismo poderia ser apontado já por aí. Por aí também seria possível pensar que estamos diante de um drama de classe média (pequeno-burguesa, diriam alguns) arquitetado com o intuito de preencher o cenário da ditadura e, quem sabe?, fazer uma ponte com os dias que vivemos. Nem é o caso de rejeitar uma leitura dessas — e em um determinado nível, não há como contestá-la. Mas nada é tão simples: nem a vida de Martim, nem o Brasil. Nem mesmo o bildungsroman é tão simples assim.
POLARIZAÇÕES
Especialmente em Cinzas do Norte (2005), que se passava também nos anos da ditadura, Milton Hatoum já tinha mostrado como se valer do apuro técnico, da experiência e da imaginação para driblar facilitadores que se encontram em dois extremos: de um lado, o mundo filtrado pelas idiossincrasias subjetivas de um personagem/autor; de outro, o mundo reduzido ao discurso objetivo e programático de um autor/personagem. Só que polarizações, por mais inesperado que possa parecer em um livro sobre a ditadura, não fazem parte da essência de A Noite da Espera.
Porque, em primeiro lugar, o ajuntamento de cacos de Martim não se dissocia dos pedaços estilhaçados de outros personagens, colegas de uma trupe de teatro da UnB e de um suplemento literário, Tribo. Entre eles: Dinah, atriz talentosa e namorada que parece sempre estar sempre a ponto de ir embora; Ângela, porra-louca às portas do desbunde, filha de um senador capacho dos militares; o amigo Nortista, do mesmo Amazonas de Milton; Lázaro, filho de candangos em Ceilândia e líder estudantil; Fabius, filho de um diplomata carioca caído em desgraça no Itamaraty.
Em parte, A Noite da Espera é também um romance geracional, com tudo convergindo para as anotações pessoais que Martim busca recolher para dar-lhes algum sentido a posteriori. Cacos que, quando colados à luz deste lugar erguido quase como lugar de desterro — Brasília –, vão dando textura a uma época que em nossa memória ficou gravada chapada em preto-branco — uma mescla das memórias das fotografias com a percepção subjetiva de um lugar-comum, os chamados “anos de chumbo”.
O que esse conjunto de personagens de A Noite da Espera nos mostra é que os tais anos tinham outras tantas tonalidades de chumbo: se os dramas pessoais são diferentes — até por cuidadosos recortes de classe — Martim e seus companheiros mostram que há desterros que se destacam, narrativamente, na uniformidade chapada de, por exemplo, uma manifestação estudantil. Ela não deixa de estar no romance, mas surge com a tal textura. Talvez uma cor — mas ela não é nem verde-amarela, nem vermelha. Ou estão lá, à disposição de quem tem a mania de encaixotar coisas. Só que A Noite da Espera não tem nada a ver com isso.
Trata-se de um tipo de gradação e sutileza que se encontra de vez em quando na literatura. Aqui, nem a polarização que define essa época — ditadura x liberdade — nem as eventuais presentes da trama — artistas x burocratas, por exemplo — são âncoras fincadas numa prosa que se limita ao tal subjetivismo parcial, de um lado, e do qual proselitismo das ideias gerais, de outro. Nada que abone o rótulo de “individualista”, com este “ista” antipático.
A passagem de uma “tribo” de exilados-mirins ao exílio político adulto de alguns é uma história que ainda está para ser contada, nos dois volumes que restam da trilogia. O que se pode intuir é que sobrará perdas na trajetória de Martim. Os anos na casa da rua Tutoia, a mãe presente dando aulas particulares de francês na Vila Mariana, as temporadas nas casas dos avós em Santos. E outras perdas nas vidas de Dinah, do Nortista, de Ângela, de Fabius, de Lázaro. Em desterros com os quais poderemos facilmente nos identificar, pensando numa vida — e em um país — que não foi.
Bravo!, fevereiro de 2018
© Almir de Freitas