No romance Diário de um Fescenino, Rubem Fonseca monta um quebra-cabeça diferente para contar a mesma história
O protagonista, já não tão jovem, é um escritor em crise, meio duro e extremamente culto; possui uma moral algo ambígua, sente uma certa culpa por ser cínico, dissimulado e declaradamente patife com as mulheres que, inexplicavelmente, atrai com facilidade; na sua angústia existencialista, teoriza sobre a literatura, cita dezenas de autores, especula sobre as maldições da condição masculina. Acaba se metendo numa encrenca feia.
Parece familiar? Para quem conhece os romances de Rubem Fonseca, é mais que isso. Seria exato dizer, logo de cara, que Diário de um Fescenino é mais uma das variações que o autor sempre faz sobre os mesmos temas. Mas há um aspecto importante aqui. No livro, Rubem Fonseca absorve deliberadamente essa sua característica, mas apenas para desafiar o discernimento dos leitores.
No seu diário escrito ao longo de um ano, Rufus – eis o nome da vez do eterno personagem – anota já no dia 2 de janeiro: “Sempre preferi que as pessoas que conheço não leiam o que escrevo, principalmente após descobrir que sou uma irrecuperável vítima da síndrome de Zuckerman”. Refere-se, como explicará adiante, em 7 de agosto, a Nathan Zuckerman – narrador utilizado amiúde por Philip Roth em sua obra – que, ao escrever um livro, é infernizado por todos, que vêem em seu personagem um alter-ego dele mesmo, como se os livros fossem os “fragmentos de uma grande confissão”. O mal, afirma Rufus, é dos leitores e até dos críticos literários.
Nesse ponto, parece que o autor ataca para se defender, pois a narrativa biográfica é sabidamente uma das suspeitas que recai sobre a sua obra repetitiva. “Nada tenho a ver com as coisas que são ditas nos meus livros”, diz Rufus mais de uma vez. Mas isso é pouco: não se está lidando aqui com um autor inexperiente. Escritor que sabe como poucos combinar técnica narrativa com bons truques, Rubem Fonseca cria uma engenhosa armadilha: se o identificamos com Rufus, estamos provando sua teoria. E, contudo, não há, diante da ostensiva exposição da “síndrome” (que se torna o núcleo central do livro), como não desconfiar que a trama serve apenas como um álibi para o escritor dizer “dane-se”: é como se aquilo que antes podia parecer velado, agora é confessado. Declara-se culpado, mas cobra um preço em troca.
Ademais, Rufus menciona também a “síndrome de Bulhão Pato”, segundo a qual os leitores se vêem retratados como os personagens de uma obra. Refere-se, agora, ao escritor que se sentiu caricaturado por Eça de Queiroz em Os Maias. Mas, então – outra pergunta inevitável – o Rufus leitor não sofre desse mal ao se identificar com Nathan Zuckerman? Ou, de novo, não é Rubem Fonseca que admite, por meio de um artifício, portar essa doença, dizendo portanto, seguindo uma lógica inescapável, que Rufus é ele? Culpado? Quem há de provar?
Engenhoso, de fato, e é acompanhado de uma série de pequenas considerações literárias, nas relações entre autor, obra e leitor. Contudo, há algo de gratuito e muito de maçante nesse quebra-cabeça. Afinal, obter essas respostas é irrelevante, e a questão inicial permanece: Rubem Fonseca segue escrevendo sempre a mesma história – não importa se a dele mesmo ou apenas aquela que ele tira da sua “imaginação”.
A diferença, única, é que ela dispensa o invólucro de tramas noir mais complexas – nada de manuseio de facas, jóias contrabandeadas, maquinações políticas ou sapos venenosos. Trata-se apenas, sem mais adereços ficcionais, da história de um escritor e seus fantasmas. Nesse sentido – e apenas nesse sentido – Diário de um Fescenino pode vir a ser o romance definitivo de Rubem Fonseca. Talvez depois venha algo novo. Ou talvez nada.
BRAVO!, maio de 2003
© Almir de Freitas