No contraste entre o glamour e o sombrio, Dentro da Noite, de João do Rio, traz a força de contos esquecidos ou subestimados
Na história da literatura brasileira simplificada que ainda campeia por aí, é caso curioso o aparente vazio de contos na virada dos séculos 19 e 20. Para os mais desavisados, é como se virtualmente não tivessem existido, bem diferente do romance – gênero ao qual a genialidade de Machado de Assis é mais associada – ou mesmo da poesia – lembrada ainda que pela caricatura que se fez da obra de Olavo Bilac. Destituído de unanimidades ou polêmicas, o gênero acabou se perdendo no silêncio da indiferença e, entre bons e maus exemplos, é difícil encontrar quem se lembre de contos de escritores como Coelho Neto, Simão Lopes Neto e até Lima Barreto – de quem se guarda pouco mais que uma lembrança daquele espertalhão que sabia javanês.
Em compensação, se são mencionados, acabam imediatamente relegados a uma espécie de escola de cronistas de época que despertam alguma curiosidade histórica e um tanto de riso pelo estilo rebuscado. O relançamento de Dentro da Noite, de João do Rio, outro integrante desse rol de contistas quase esquecidos e de méritos literários subestimados, pode contribuir para que se comece a desfazer um equívoco que, de tão antigo, só perpetua velhos preconceitos e reproduz a simples ignorância.
Nascido João Paulo Alberto Coelho Barreto (1881-1921), o jornalista e escritor João do Rio – pseudônimo pelo qual ficou mais conhecido – tem de fato uma obra que mostra com minúcias o cotidiano e a vida da Belle Époque carioca, numa prosa fortemente marcada por um certo beletrismo, típico da época e bastante adequada, aliás, às manias ultrafashion da alta sociedade de então, esforçada em construir um ambiente chic copiado de Paris ou Londres. Mas nem só de registros naturalistas expressos em galicismos e anglicismos se alimentam as narrativas de João do Rio. Ainda que ele mesmo pertencesse a essa elite, era um aristocrata estranho, que, sem ser propriamente marginal, era um dândi mulato e homossexual, dono de uma ambiguidade pessoal e literária com parentesco direto com Oscar Wilde, de quem, aliás, traduziu Salomé. A estética, o espírito e o gosto art noveau que moviam o imaginário dessa sociedade eram também aquelas pelas quais, na outra face da mesma moeda, se podia exprimir, numa elegância mordaz, o decadentismo típico de sua época.
É assim que, na quase totalidade de seus 18 contos, Dentro da Noite mostra um mundo em que o glamour serve como contraste para o feio, o sórdido e o sombrio existente nos subterrâneos da cidade e do próprio homem. É quando, num cenário preenchido por esmaltes árabes, tecidos finos de cambraia, porcelanas da Pérsia e outros bricabraques, se revelam os seres bizarros, os mitômanos, os cleptomaníacos, os viciados no jogo, em drogas – éter e morfina eram os mais comuns – ou em outras coisas mais estranhas ainda, sexuais especialmente.
Às vezes, impressiona pela ousadia. Logo no conto Dentro da Noite se apresenta Rodolfo Queiroz, que, de elegante artista, se perde pelas noites de chuva em trens de subúrbio atrás do prazer de enterrar alfinetes nos braços de mulheres: “No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espetá-los, de enterrar-lhes alfinetes, de cosê-los devagarinho, a picadas”, explica o personagem a um atônito interlocutor. Em outro conto, Emoções, surge o velho barão Belfort, o gentleman cínico que, presente em várias narrativas, diz “as coisas mais horrendas com uma perfeita distinção”. É por meio desse personagem que João do Rio expõe, em várias histórias, a “leviandade elegante” diante da tragédia alheia: “Que fina emoção! O jogo, quando empolga, domina e envolve o homem, é o mais belo vício da vida, é o enlouquecido espetáculo de uma catástrofe sempre iminente, de um abismo em vertigem”. No conto seguinte, História de Gente Alegre, indaga a alguém, impagável, sobre as prostitutas: “Você de certo ainda não quis fazer a psicologia da mulher alegre atirando-se a todos os excessos por enervamento de não ter o que fazer?”. Outra, algo surpreendente na sua complexidade psicológica, ao descrever uma alpinista social ninfomaníaca, em Duas Criaturas: “E entretanto a Maria é a alma envenenada, agrilhoada a um corpo que detesta, desejando, no desequilíbrio de carne a tropa de homens, desejando, no desequilíbrio de moral, a posição e o respeito”.
No universo de João do Rio, estão, na outra ponta, os párias da sociedade, os insignificantes, os doentes, os rejeitados e os decadentes de toda sorte. Nessas narrativas, a linguagem se torna mais despojada, nas quais o cinismo cede lugar a uma mescla de morbidez e ternura, ainda que cruel. São aí que surgem os estranhos casos de hiperestesia, de deformidades sensoriais, pelos quais o autor nutria quase que uma obsessão. Em A Noiva do Som, é uma jovem pobre e triste que só vive enquanto um pianista anônimo toca na vizinhança; em A Mais Estranha Moléstia, é um jovem atormentado por um olfato anormal na sua agudeza; em Coração, a agônica história de um professor cuja desgraça é seu excesso de amor; e, em O Carro da Semana Santa, que fecha o livro, a luxúria perversa de uma misteriosa dama à caça de homens rodando com seu carro em torno das igrejas. Em outros contos, como em O Bebê de Tarlatana Rosa e A Peste, vai-se direto ao grotesco, com a descrição de deformações físicas que tem a mesma precisão exibida nos ambientes da alta sociedade.
Como bem se vê, a obra de João do Rio está longe de se limitar a ser uma compilação de costumes de uma época passadista, escrita num castiço afetado, resultando numa simples crônica citadina. Num movimento que abarca a luz e a treva, o escritor dá conta da totalidade de uma época e de uma cidade com lucidez e domínio da narrativa – apesar de suas esquisitices e irregularidades – como poucos. Mais que uma perda para a história da literatura brasileira, o esquecimento a que acabaram sendo relegados os personagens e as temáticas de João do Rio é sobretudo uma perda para o leitor que, desavisado ainda, anda a enxergar um vácuo de bons contos no início do século que se passou.
BRAVO!, setembro de 2002
© Almir de Freitas