O Legado de Eszter, de Sándor Márai, mostra, além do drama fácil, a visão da maturidade diante do vigor e das ilusões perdidas da juventude
O húngaro Sándor Márai (1900-1989) tinha 38 anos quando escreveu este precioso livro, O Legado de Eszter, apenas agora editado no Brasil. Pelas memórias da personagem-título, o autor tece com habilidade um emaranhado de emoções em conflito e de contradições de gestos e de sentimentos humanos, enroscados como nós górdios de um tecido mal-acabado. Em jogo, as esperanças da mais tenra juventude confrontada com as marcas da velhice.
“Não sei o que Deus ainda reserva para mim. Entretanto, antes de morrer, quero contar a história do dia em que Lajos esteve comigo pela última vez e me roubou”, é como Eszter principia suas lembranças. Não há muito mistério: “Que fazer? Foi o único homem que amei em minha vida”, escreve quase que imediatamente a seguir. Será no desenrolar dessa história que Márai, por meio da boca de Eszter, adiciona uma nova trama que perpassa os fatos, de gente perdida ou se guiando entre as forças e as fraquezas próprias do feminino e do masculino. Lajos, o reconhecidamente mentiroso (“capaz de mentir com lágrimas, com boas intenções”), o ladrão notório, o falastrão e o prestidigitador/falsificador maravilhoso, anuncia sua volta após 20 anos de ausência. Lajos, que muitos anos antes havia prometido casar-se com Eszter, e acabou casando e tendo filhos com a irmã dela, Vilma, que morreu pouco depois; que muito antes falsificara promissórias das irmãs para tentar ficar com a casa e o jardim que foram as únicas coisas que restaram à envelhecida, não-casada e sem filhos Eszter, que tem como companhia apenas a agregada Nunu. O vigor se foi, mas o essencial da vida não muda, apenas perde coloração.
É Márai quem fala, investido de sua madura personagem, construindo uma narrativa admirável, conservada ou pelo menos não comprometida na tradução direta do húngaro de Paulo Schiller. Seu relato ora se dá como prece, como lamúrio contido por uma coisa irremediavelmente perdida (mas que tinha de acontecer, como dirá Lajos), ora como impactante e comovente realismo nas lembranças que cosem toda a tessitura de O Legado de Eszter. “E naquela hora – Deus, dai-me forças para ser sincera! – sim, naquela hora, quando baixávamos o caixão de minha irmã na terra, vivia em mim a esperança de que Lajos, as crianças, talvez minha própria vida ainda pudessem se acertar.”
E, ao longo da leitura, descobre-se que é o tempo que age sobre todos, incapaz de mudar o amor, dando-lhe apenas novas formas, mas também é ele que implacavelmente murcha todas as ilusões. O relato de Eszter é mais sutil que o de uma mulher ressentida e amarga. Márai sabia o que fazia: dele, extrai o tom exato da memória de uma mulher de mais de 50 anos, que possui a frieza da maturidade, mas traz vívidas as lembranças do susto, das palpitações, das maravilhas que um dia a vida prometeu e que – não sem dor – está preparada para enfrentar; um destino que, a seu modo, faz sentido.
Ainda o tempo: é sempre a força da velhice que encara a força perdida da juventude, e as duas se mesclam, confrontando pequenas e grandes esperanças que as paixões despertaram e que subsistem. Lajos volta dizendo que quer acertar tudo, que o que um dia iniciou tem de ser encerrado – máxima com a qual Eszter, por maior que seja o perigo, vai assentir. Não pelas razões dele, do patife maravilhoso, mas pelas suas próprias, fundadas na sua própria vida. “Quando alguém emerge do passado e anuncia em tom comovido que deseja acertar ‘tudo’, o propósito só pode suscitar compaixão e riso; o tempo já ‘acertou’ tudo, a seu modo singular, o único possível.” No fim, não há de se esperar grandes arroubos dramáticos. Apenas a sensação de que a vida, de algum modo, poderia ter sido diferente e não foi. Apenas isso. O que – e não é necessário ser melodramático para demonstrar – é muito.
BRAVO!, novembro de 2001
© Almir de Freitas