Em Pico na Veia, Dalton Trevisan exibe o lado mais simplório da fragmentação que tem caracterizado a ficção brasileira
Era uma vez João e Maria, personagens assíduos de um escritor de Curitiba que não gostava de dar as caras nem sair por aí dando declarações. A história é conhecida, ou melhor, são conhecidas na história do conto brasileiro contemporâneo as pequenas e sintéticas narrativas de Dalton Trevisan, quase sempre focadas em gente simples, de vidas atribuladas por coisas miúdas. Se não tinham nada de fulgurante – como de fato não tinham –, possuíam lá sua originalidade e ajudavam, com a sua simplicidade, a compor um retrato da diversidade literária do país. Entretanto, de algum tempo para cá e por razões ainda não devidamente estudadas, parece que algo desandou com o conto e as novelas derivadas de narrativas curtas, produzindo uma galeria de obras divididas entre uma certa tradição temática e algumas tentativas de inovação formal. Pico na Veia, novo livro do escritor curitibano, é mais do que sintomático desse fenômeno: é o limite do suportável de uma prosa que se mostra cada vez mais fragmentada, que se concede o aval de ser passada para o papel sem maiores labores do ofício de escrever.
A rigor, Pico na Veia não chega a ser um livro de contos. É, antes, um amontoado de micronarrativas, frases soltas, ruídos de diálogos, pedaços de silêncios com supostos subentendidos – tudo criando lacunas num mundo de lacunas, conhecidas da já vasta obra do escritor. É nela, espalhada um pouco em cada volume, que está a gente pobre, triste e doente como a de Mistérios de Curitiba (1968); os relacionamentos difíceis de A Guerra Conjugal (1969); as perversões sexuais e o bizarro cotidiano de Morte na Praça (1964) ou Pão e Sangue (1988). E aqui e acolá, as referências à cidade enganosa em que o escritor, “vampiro”, se esconde.
A escrita concisa não é, em si, uma má ideia – e grandes escritores já provaram isso –, mas são necessários muitos cuidados. A questão aqui não é essa. Pico na Veia parece querer mostrar, por alguma mágica, que o óbvio e o lugar-comum, pela simples condição de ser lugar-comum, ganha status de literatura. Se proposital ou não, isso pouco importa. Ao fim e ao cabo – edição impressa –, o resultado são páginas em que a simplicidade cede lugar ao simplório, e, o certo estranhamento e crueza de sua obra, ao constrangedor.
Primeiro exemplo, a piadinha:
“– Alô, quem é?
– …
– Não estou te ouvindo bem. Um momento. Deixa eu pôr o óculo.
– …
– Agora, sim. Pode falar.”
Segundo, o aforismo:
“Tivesse o nariz mais curto, não seria Pascal um grande frasista.”
Terceiro, o quase inexplicável – e por ora basta:
“Dia das Mães: Quantos crimes literários, ai, mãe, são cometidos em teu nome!”
Na estrutura geral, pedaços de textos como esses vão aparecendo, compartimentados e isolados uns dos outros – vez ou outra, uma narrativa se esboça, mas, mesmo assim, ficam no meio do caminho. A pergunta natural, inocente até, é: por que tais coisas estão em um livro? A impressão, na busca de alguma resposta, é a de que Dalton Trevisan se dedicou a montar uma espécie de enciclopédia sobre a banalidade, com verbetes nascidos de insights. Não é difícil imaginar – já que estamos no terreno da banalidade mesmo – uma cena com o escritor perscrutando as ruas, jornal embaixo do braço, anotando ideias em bancos de jardim e mesas de restaurantes. Se é assim, Pico na Veia é a suposta prova de que qualquer um que olhe ao redor e saiba o que é uma vírgula, um discurso indireto ou mesmo um advérbio, sabe fazer literatura: nada é tão enganoso, e nada é tão nefasto. É como se, em casos radicais, tivéssemos atingido, em prosa, o nível de gratuidade dos epigramas que há muito assolam a poesia com o beneplácito dos “especialistas”.
Em graus diferentes, isso pode ser notado em lançamentos recentes. Mesmo em livros de maior vigor e de articulação da linguagem, é como se o norte ainda estivesse perdido, que não há uma clareza do que é relevante ser dito nem como fazê-lo. A saída mais comum é a simplicidade forçada: o fragmento, fechado sobre si mesmo como se tivesse um significado próprio, aparece em livros como Era o Dito, de Marcelino Freire; Eles Eram Muitos Cavalos, de Luiz Rufatto; Cem Coisas, de Fernando Bonassi; O Azul do Filho Morto, de Marcelo Mirisola ou o recente O Anônimo Célebre, de Ignácio de Loyola Brandão, para citar apenas alguns exemplos.
Cada um a sua maneira, com maior ou menor unidade e níveis de qualidade técnica, faz-se desse modo uma tradução da realidade circundante como se ela fosse uma soma de cacos – de informação, influências, memórias, “sensações”, pensamentos corriqueiros e os tais insights. Diferenças à parte, o que fica nítido é que há uma desorientação mais ou menos disseminada, que revela em parte os tempos em que vivemos, em parte a dificuldade dos escritores em apreendê-los. Se daí alguém disser que existe uma “crise” na literatura, há que se acrescentar que isso não é necessariamente ruim: se ela é sentida e reconhecida, é possível que nela se gestem – no mesmo passo dos equívocos – os elementos que apontarão o caminho do novo. O que se pede minimamente é que haja disposição real para essa formulação, não acomodação em fórmulas prontas. Se a leitura do fragmento pode ser legítima, muitas vezes ela fica oculta sob a tentação da facilidade e pelo consenso silencioso.
Pois escrever, prosa ou poesia, demanda trabalho. Em Pico na Veia, ele chega virtualmente ao grau zero: é um livro embalado por técnicas conhecidas, talvez algum projeto nebuloso de ficção:
“Um bom conto é pico certeiro na veia.”
Se a frase soa bem, o conjunto disperso é contraproducente: passa despercebido, não dá “barato” nem beira o abismo, mesmo quando Dalton Trevisan retoma o horror cotidiano. Tudo o que resta são truques de um escritor que plagia a si mesmo e, a certa altura, parece querer se justificar apelando a Olavo Bilac:
“– Ora, direis, ele se repete. E eu vos direi, no entanto, como poderia se cada personagem é baseado numa pessoa diferente? Se alguém se repete são elas, essas pessoas iguais, sempre as mesmas. Pô, destino próprio, história única, vida original – não há mais?”
Sempre haverá mais: a diferença, por mais que demore a aparecer, é uma força irresistível. João, Maria, Ritinha, André e outros são apenas sobras do que um dia foi recolhido nas ruas e nos antros de uma cidade, vistas com olhos de um mundo que já não é o mesmo. Esgotou-se. Pico na Veia mostra que o “vampiro de Curitiba” não assusta nem seduz mais ninguém.
BRAVO!, novembro de 2002
© Almir de Freitas