Como num jogo involuntário, textos irregulares de Um General na Biblioteca mostram a multiplicidade da obra do italiano
Um autor sempre paga um preço quando seus manuscritos de juventude, ou os guardados na gaveta, ou os apenas confinados a periódicos, são escavados e publicados postumamente em forma de livro, incorporando-se simbolicamente a sua obra. É verdade também que esses escritos, por terem ficado ocultos, ajudam a explicar os que vieram à luz por opção do autor. Essa conta que se faz não é diferente com Italo Calvino, um escritor que soube combinar como poucos o realismo da literatura italiana do pós-guerra com os movimentos de vanguarda posteriores. Publicado agora no Brasil, Um General na Biblioteca reúne apólogos, contos, diálogos e esboços de romances escritos entre 1943 e 1984, cujas qualidades literárias, analisadas friamente, são francamente irregulares. Entretanto, se esse custo é inevitável, ele não é o mesmo para todos os autores e, no caso específico, as particularidades são tantas e tão notáveis que, na ponta do lápis, acabam por justificar a publicação.
Porque há mais que isso no caso de Calvino: mais que um estudo a posteriori, Um General na Biblioteca permite, em grau superior, uma nova leitura, quase como se o livro tivesse sido o resultado de um experimento involuntário do escritor que, por felicidade (não há outra palavra), funciona como narrativa. Nos textos, editados segundo uma ordem cronológica, vão-se encontrando, embaralhadas, pistas dos temas, das técnicas e da postura do autor diante da vida e de seu ofício. Nada mais adequado para uma obra que frequentemente é identificada com o universo dos jogos de Borges e que, deliberadamente, nasceu em grande parte da intenção de fazer do ato de escrever um exercício – da metalinguagem de Se um Viajante numa Noite de Inverno ao desafio de interpretar signos em O Castelo dos Destinos Cruzados.
O resultado é que em Um General na Biblioteca, nas suas deficiências e boas surpresas, surge um novo, mas perfeitamente reconhecível, Italo Calvino. No conto O Incêndio da Casa Abominável (publicado em 1973 na Playboy italiana), por exemplo, reconhecemos o exercício daquilo que Umberto Eco chamou de ars combinatoria na investigação feita por um programador de computador, que permuta possibilidades de acontecimentos com base em uma lista de 12 crimes e quatro personagens mortos em uma casa queimada. Não por acaso, o conto nasceu de um desafio que a IBM lhe fez, o de escrever uma história em uma de suas máquinas, numa época em que não havia processadores de texto da Microsoft e congêneres a auxiliar os leigos em linguagem binária. O tema implícito de decifrar um labirinto de informações, aliás, aparece também em A Memória do Mundo, que reitera a marca enciclopédica e “catalogadora” de uma obra que se debruçou sobre As Cidades Invisíveis de Marco Polo até, de forma mais direta, à obra de não-ficção Por Que Ler os Clássicos.
E é assim que um pouco de tudo de Calvino vai se revelando. Em O Regimento Desaparecido está a marca da trilogia Os Nossos Antepassados, que reúne os romances O Visconde Partido ao Meio, O Cavaleiro Inexistente e O Barão nas Árvores; no bom Amor longe de Casa, os símbolos e a dificuldade de comunicação dos contos de Os Amores Difíceis e do próprio O Castelo dos Destinos Cruzados; em O Chamado da Água, a descrição minuciosa e precisa encontrada em Palomar; nas noções geológicas de A Bomba de Gasolina, a pesquisa para As Cosmicômicas; na casa entre o mar e a colina, o cenário das memórias de infância de O Caminho de San Giovanni (este também publicado postumamente). E, em quase tudo, menos ou mais visível, um pouco da narrativa fabulatória que levou a Giulio Einaudi Editore a encomendar a Calvino a compilação de Fábulas Italianas, em 1954.
Nesse tipo de ficção, não é só o tom moral que conta, mas sobretudo a forma, que às vezes nos desconcerta em sua objetividade, ou “rapidez”, como preferia o autor: “Havia um país em que tudo era proibido” é o primeiro parágrafo de Quem se Contenta; em A Ovelha Negra, a fórmula se repete: “Havia um país em que todos eram ladrões”. As duas histórias são apólogos de sua primeira fase, ainda na juventude, quando o autor considerava o gênero um modo de narrativa menor, típico de um período de crise e opressão que ele associava ao fascismo italiano. Não deixa de ser notável, contudo, que a narrativa em forma de fábula possa ser encontrada em outros autores italianos de épocas distintas – de Dino Buzzati ao já mencionado Umberto Eco – e tenha mesmo reaparecido em formas mais sofisticadas nos escritos posteriores de Calvino, sendo “reabilitada” por ele como valor narrativo em suas Seis Propostas para o Próximo Milênio, na conferência Rapidez.
A irregularidade que se vê em Um General na Biblioteca não advém, portanto, dessa formulação singela, típica dos apólogos, como se poderia imaginar de início. Ao contrário, algum constrangimento acontece em narrativas de maior fôlego, quando o jovem Calvino ainda mostrava uma técnica deficiente no esforço descritivo e/ou de narração subjetiva, como é visível nos contos – esses mais longos – O Rio Seco e Imprestável. Este último, a história boba de um homem que não sabia amarrar os cadarços do sapato, pensada originalmente como romance, que seria chamado de Como Eu não Fui Noé (!). Aqui, compreendemos bem as razões que levaram o autor a abortar o projeto, como muitos outros exemplos que se seguem no livro – narrativas bruscamente interrompidas (O Colar da Rainha), fragmentadas (A Decapitação dos Chefes) ou simplesmente não levadas por algum motivo a público (Henry Ford).
Em compensação, há boas idéias, caso de Como um Voo de Patos e Um Belo Dia de Março, e momentos de pura síntese, ou “rapidez”: “Nessas horas, não consigo ficar em casa. Moro num quarto alugado num quinto andar; debaixo de minha janela dia e noite os bondes balançam na rua estreita, como que passando descarrilados pelo quarto; à noite, lá longe os bondes dão gritos como corujas. A filha do senhorio é uma empregada gorda e histérica: um dia quebrou um prato de ervilhas no corredor e se fechou no quarto gritando”.
Ainda entre o constrangimento e as boas surpresas, há passagens em que se reconhecem mais nitidamente os traços de Calvino como pessoa pública, imagem historicamente associada ao antifascismo e à militância no Partido Comunista Italiano. Em alguns contos, por serem mais esboços de obras, há um tom discursivo maior, elaborado. É o que permite, por exemplo, o autor misturar literatura com o ensaio teórico e engajado (Olhos Inimigos ou o diálogo Montezuma) e até explicar em notas as alegorias políticas, como se vê em A Grande Bonança das Antilhas. Ao lado disso, a mesma literalidade revela também a postura de um intelectual que, no pós-guerra, vai acompanhando as mudanças no mundo ao seu redor: além de computadores, surgem mísseis nucleares, tevê, um personagem hippie.
Como foi dito, parte disso é apresentada de forma um pouco tosca e caricata. Mas essa soma de informações em várias técnicas de escrita não é nada má para quem, já no fim da vida, disse na última conferência de Seis Propostas…, intitulada Multiplicidade: “(…) Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis”. É por isso que vale a pena, em Um General na Biblioteca, decepcionar-se um pouco com Calvino.
BRAVO!, agosto de 2001
© Almir de Freitas