A Caverna, primeiro romance do escritor depois do Nobel de Literatura, limita-se a repetir fórmulas de suas obras anteriores
Conta Platão que Sócrates, em conhecido diálogo em favor de sua república de filósofos, disse que poetas e artistas em geral são meros imitadores de um mundo ilusório, feito de sombras, cuja matriz, naturalmente, apenas filósofos conheceriam. A Caverna, novo romance de José Saramago, apresenta-se ao público como leitura moderna da alegoria platônica, na qual o ser humano é essencialmente prisioneiro de sua ignorância e, se contrariado, manda o culpado beber cicuta. Mas – com alguma atenção – o livro serve também de exemplo de como um artista, no caso um escritor, pode simplesmente imitar a si mesmo, numa alegoria mais mundana, em que as sombras na parede não são da realidade visível e enganosa, mas da sua própria obra.
Isso não vai se ver em nenhum personagem, mas no próprio Saramago, dono de uma obra sem dúvida extraordinária, ainda que seu humanismo radical traduzido em uma prosa lapidada às vezes pague o preço de escorregar para o panfletário em uma sintaxe prolixa. Se no mais das vezes vale a pena, em A Caverna tal custo chega inflacionado ao leitor, diante da constatação de que, mais do que dar sequência ao seu estilo próprio, Saramago se repete de modo quase esquemático: as técnicas narrativas que caracterizam sua prosa e os traços humanos aos quais habitualmente recorre tornam-se peças encaixadas artificialmente em um discurso político e ideológico.
A trama do romance se desenvolve, literal e metaforicamente, em torno do Centro, edifício gigantesco – misto de shopping center e condomínio de segurança máxima – que traça, como se fosse entidade autônoma, os destinos da cidade, dos miseráveis e do povoado ao seu redor. Em 48 andares acima da terra e dez no subterrâneo, compra-se, trabalha-se, distrai-se e vive-se, com “uma lista a tal ponto extensa de prodígios que nem oitenta anos de vida ociosa bastariam para os desfrutar com proveito, mesmo tendo nascido a pessoa no Centro e não tendo saído dele nunca para o mundo exterior”. Nele, há cartazes que dizem coisas como “TRAGA SEUS AMIGOS DESDE QUE COMPREM”. Variante do monstrengo burocrático de Todos os Nomes, romance lançado pelo autor em 1997, esse monumento ao consumo tem entre as suas vítimas Cipriano, oleiro de terceira geração da família Algor, que terá suas terrinas, bules e pratos artesanais rejeitados pelo Centro. A razão é que a freguesia passou a preferir “louças de plástico a imitar o barro, imitam-no tão bem que parecem autênticas, com a vantagem de que pesam muito menos e são muito mais baratas”, explicam os autômatos funcionários.
Não há mistério nenhum nas alegorias, e tão grande é a simplicidade delas que é inevitável perguntar-se por que, afinal, são elas necessárias. E o romance não fica por aí, outras imagens virão, apontando sempre os contrastes entre os valores de realidades opostas: de um lado, a olaria no campo, a casinha de cachorro, a criação minuciosa de bonecos de barro, a amoreira-preta velando o trabalho ao ar livre; de outro, o arranha-céu, os aquários virtuais como tamagochis, os simulacros bizarros, as estufas de plástico cinzento que cozinham os trabalhadores.
Por mais que se ache que uma crítica nesses moldes às consequências da economia de mercado (pois afinal é disso que se trata) não está à altura de um escritor como José Saramago – o que sempre é um ponto discutível –, isso é apenas parte do problema. A peça de teatro In Nomine Dei e a parábola sobre parábolas de O Evangelho segundo Jesus Cristo são livros que não deixam dúvida às convicções anticlericais e ateístas do autor, confessas, de resto. Mas há uma diferença crucial: essas obras encontravam uma contrapartida em narrativas que tinham seu sentido e, a seu modo, eram desenvolvidas de modo original.
Em A Caverna, no entanto, é nítido que o argumento por que se guia Saramago, fincado em uma realidade ordinária e supostamente mais tangível do que a vista em seus livros anteriores, exigiria uma elaboração diferente. Mesmo assim, o leitor vai se deparar com os elementos daqueles romances em que se viam geringonças a voar, penínsulas à deriva, buscas desencadeadas por nomes misteriosos, colóquios com fantasmas e distúrbios oftalmológicos em massa: o grupo de pessoas que, por uma razão ou por outra, aparta-se das demais (A Jangada de Pedra, Ensaio sobre a Cegueira) e personagens como o homem de meia-idade solitário (Todos os Nomes) que encontra uma companheira (O Ano da Morte de Ricardo Reis, História do Cerco de Lisboa) e a mulher de personalidade ou dotada de uma força interior às voltas com a gravidez – a própria ou de outrem, a exemplo de Blimunda, do magnífico Memorial do Convento. Até o cão reaparece, desta vez chamado Achado, com um papel de maior destaque que seus predecessores.
Em todos essas obras está a marca do humanismo radical a que já se fez referência: contra a barbárie, contra a intolerância, a favor do indivíduo – uma constante que, diga-se, nunca é demasiada, ainda mais em boa literatura. Mas, se o universo se reduz a esquemas de militância, o que se poderia esperar de Saramago era que adequasse seus modelos humanos à narrativa, para que dela seus personagens não destoassem e soassem falsos. Mas só há sombras na parede: a gravidez da filha do oleiro, Marta, é um detalhe solto, e seu temperamento resoluto serve apenas para desencadear a empreitada de fabricar bonecos de barro (descrita nos mínimos detalhes técnicos em mais da metade das 352 páginas de A Caverna). Já Isaura, escolhida para ser a companheira de Cipriano, é apresentada no início, lembrada de vez em quando e reintroduzida no fim, exatamente quando se forma o grupo de iguais.
O resultado é uma narrativa fragmentada, um romance dividido em passagens que só têm conexão com outras de maneira forçada, e a literatura refinada cede lugar ao sermão. Em meio aos diálogos encadeados, às circunvoluções dos pensamentos dos personagens e do narrador, dos colóquios imaginários, da ironia e da sutileza de uma das melhores prosas em língua portuguesa, surgem, de repente, falas diretas, como “não vou ficar o resto dos dias atado a um banco de pedra e a olhar para uma parede”.
Eis a moral do sermão, neste que é – diz-se finalmente – o primeiro livro de Saramago depois de receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998. Se é certo que isso não fez diferença para o autor quando o escreveu, não se pode negar que a sua obra carrega no mercado editorial e no público uma marca de efeitos múltiplos, que mostram que a realidade conhecida – ilusória ou não – é muito mais complexa do que A Caverna sugere. Nesse mundo de sombras, em que as convicções e os desejos se debatem contra a insensatez coletiva, uma vez mais o exemplo do Saramago escritor supera os dos seus personagens, que bem poderiam ler, em um daqueles cartazes do Centro: “COMPRE O NOVO ROMANCE DE JOSÉ SARAMAGO, PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA”.
BRAVO!, dezembro de 2000
© Almir de Freitas