“Estrangeiro aqui como em toda parte”: o verso de Fernando Pessoa na pele de Álvaro de Campos é apenas um acento lisboeta para citar dois relançamentos – clássicos de cantos opostos do planeta, ambos sobre homens deslocados em meio à gente, em épocas e de maneiras distintas. Dois jeitos diferentes de ser pária.
O primeiro, batizado de Rip Wan Winkle pelo americano Washington Irwing num conto publicado em 1819, dormiu um pouco demais (20 anos) sob uma árvore e acordou num mundo em que os Estados Unidos não eram mais colônia britânica. Centro das atenções, em terceira pessoa:
“A aparência de Rip, com sua barba longa e grisalha, sua caçadeira enferrujada, suas roupas maltrapilhas e um exército de mulheres e crianças nos calcanhares, logo atraiu a atenção dos políticos da taverna. (…) Puxando-o meio de lado, perguntou “com que lado ele votara”. Rip olhava atônito. Outro sujeitinho baixo mas intrometido puxou-o pelo braço. Erguendo-se na ponta dos pés, perguntou em seu ouvido se ele era “Federal ou Democrata”. Rip novamente não conseguiu entender a pergunta.” (A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça e Rip Van Winkle, de Washington Irving. Tradução de Celso Mauro Paciornick. Iluminuras, 128 págs., R$ 29).
O segundo, criado pelo norueguês em 1890 do norueguês Knut Hamsun, é um escritor esfaimado que vaga pelas ruas de Cristiânia (antiga Oslo) munido de um toco de lápis para ir sobrevivendo de uns textos aqui e acolá. Invisível, em primeira pessoa:
“Que desolação, que miséria inigualável, ser indigente a esse ponto! Que humilhação, que desonra! (…) Para consolar-me e inocentar-me, começo a atribuir todos os defeitos possíveis a essas pessoas alegres que me roçam; alço ferozmente os ombros e lanço olhares de desprezo a todos que desfilam diante de mim, aos pares. Ah, esses estudantes sóbrios, comedores de bombons, que acreditam fazer uma orgia “europeia” quando conseguem acariciar os seios de uma costureirinha!” (Fome, de Knut Hamsun. Tradução de Carlos Drummond de Andrade. Geração Editorial, 176 págs., R$ 29,90).