Acaba de sair uma edição comemorativa dos 80 anos de publicação de Caetés, o romance de estreia de Graciliano Ramos (Record, 320 págs., R$ 64,90). Abaixo, a constatação capital do guarda-livros João Valério – um dos muitos pobres-diabos da literatura brasileira – diante da vida besta em Palmeira dos Índios, diante do projeto malogrado de escrever um romance sobre os índios caetés – aqueles mesmos que devoraram o bispo Sardinha.
“Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido. com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha, com algumas diferenças. Um caeté de olhos azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas. É isto, um caeté. Estes desejos excessivos que desaparecem bruscamente… Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não posso acabar… O hábito de vagabundear por aqui, por ali, por acolá, da pensão para o Bacurau, da “Semana” para a casa de Vitorino, aos domingos pelos arrabaldes; e depois dias extensos de preguiça e tédio passados no quarto, aborrecimentos sem motivo que me atiram para a cama, embrutecido e pesado… Esta inteligência confusa, pronta a receber sem exame o que lhe impingem… A timidez que me obriga a ficar cinco minutos diante de uma senhora, torcendo as mãos com angústia… Explosões súbitas de dor teatral, logo substituídas por indiferença completa… Admiração exagerada às coisas brilhantes, ao período sonoro, às miçangas literárias, o que me induz a pendurar no que escrevo adjetivos de enfeite, que depois risco…