Dando continuidade à série letras etílicas (o post anterior, aqui), outro lançamento na área é A Alma do Vinho (Globo, 400 págs., R$ 48), que reúne 40 textos literários sobre uma das mais antigas bebidas do mundo. A seleção de Waldemar Rodrigues Pereira Filho inclui prosa e poesia e abrange praticamente todos os períodos da história ocidental – do porre de Noé, que se pôs a dançar nu na frente do filho (que ainda levou a pior na história), até a “vida líquida” de Hilda Hilst nas Alcoólicas.
Entre as bebedeiras no livro, há as classicamente vergonhosas, como a narrada por Juan Palazzo, em A Separação.
“A noite vinha antes como uma calamidade. Trazia o chapéu amassado, a gravata caída sobre a camisa violácea de vinho e as botinas sujas de barro. Caminhava no meio dos transeuntes, bamboleando-se, dando palmadas nas paredes, fazendo caprichosos esses, e em cada esquina, cruzando a calçada sem parar. (…) Junto a um umbral, deteve-se. A seu ver, a escada branca balançava, e em seu centro, acima, a luz esverdeada de um farol lhe sorria com um terrível esgar cadavérico.”
Mais elegante, mas não muito mais sóbrio, é o estado de Cruz e Souza em textos do Missal:
“O que excita o artista, seja nos átrios claros de palácios ou em toda parte, é simplesmente a Forma, é toda essa roupagem deslumbrante que faz as mulheres parecerem auroras boreais; o que lhe incita a pensar nelas, a desejá-las, é a plástica olímpica, o onipotente esplendor das curvas cinzeladas, os mármores coríntios, o alabastro dos corpos flóreos. O que o surpreende, deixa atraído e fascinado é ar gelado da carne alva das louras, que deliciam, o ardente sol tropical da carne tentadora das morenas, que cheiram a sândalo e matam.”
Por fim, os maus pedaços por que passa do narrador de Vinho Generoso, de Italo Svevo:
“Surpreso, de olhos fechados, percebi um estranho clarão, um redemoinho de faíscas que supus produzidas pelo incêndio que sentia em mim. (…) Num primeiro momento pensei que aquelas gotas podiam me ver. E, para me verem melhor, logo se converteram em vários olhinhos. Enquanto se alongavam ao cair, formava-se no centro delas um pequeno círculo que, privando-se do véu azul, descobria um verdadeiro olho, malicioso e malévolo. Com certeza estava sendo perseguido por uma multidão que não gostava de mim.”
Porres homéricos numa coletânea de obras literárias sobre o vinho – http://shar.es/aFDeg