Na literatura e no cinema, há situações que são, por assim dizer, “clássicos da banalidade”, típicos de um realismo que procura se sustentar em situações cotidianas, mesmo em narrativas de eventos extraordinários. Confrontar crianças com a morte – a inocência com o fim – é um recurso que, além do impacto flagrante, se encaixa à perfeição nesse gênero: é algo que não acontece todo dia; ao mesmo tempo, é algo que acontece todo o tempo. A contradição, aqui, é meramente aparente, e dá conta da distância entre o indivíduo e a história (a foto acima é de Michael Osmenda).
Dois livros, publicados recentemente no Brasil, promovem esse encontro – no caso, com a morte em forma de assassinato.
Lançado originalmente em 1980, Até Mais, Vejo Você Amanhã, de William Maxwell (Alfaguara, 168 págs., R$ 32,90), explora as consequências de um crime para a amizade de duas crianças. Uma delas, anos depois, relembra quando deixou escapar o amigo, filho do provável assassino, num encontro mudo no corredor da escola:
“Se eu fosse o homem idoso que sou agora, poderia ter simplesmente dito o nome dele. Ou abanando a cabeça, entristecido, dizendo ‘Eu sei, eu sei…’ Mas será que isso teria sido melhor? Eu não era um homem idoso, os cães farejadores nunca haviam saído à procura do eu pai, e eu não sabia (como é que alguém poderia saber, quantas vezes uma coisa dessas acontece com um garoto de treze anos?) o que ele havia passado. Assim como quem nunca prendeu os dedos na porta do carro quando ela bate não sabe como é. De vez em quando, encontram-se meninos pendendo de caibros, enforcados, ou mortos por uma espingarda que se acredita ter disparado acidentalmente. O assombroso é seja uma ocorrência tão rara.”
Em Se Eu Fechar os Olhos Agora, de Edney Silvestre (Record, 304 págs., R$ 34,90), são as crianças (circunstância, aliás, que é outro miniclássico) que encontram o corpo mutilado de uma mulher. Também anos mais tarde, um deles relembra o dia do encontro:
“Mesmo aqui, hoje, mesmo nesta cidade estrangeira onde vivo de tempos em tempos, mesmo hoje, às vezes, quando estou distraído, quando saio do metrô, ou quando viro uma esquina formada por prédios harmoniosos que fazem o mundo parecer organizado e lógico, eu saio de um café onde comprei cigarros, desavisado, colocando as moedas no bolso do paletó e buscando o isqueiro, eu sinto no rosto aquele mesmo vento frio que soprou de repente naquele mesmo dia de abril, às vezes, nem sempre, às vezes, o mesmo vento frio que pareceu soprar naquele dia morno, balouçando, levemente, de um lado para o outro, suavemente, o capim alto que havia em volta do lago onde a gente foi se refugiar naquela manhã, longe dos adultos, como tínhamos feito durante todo o verão.”
Dois livros, dois crimes e quatro meninos – http://shar.es/aT47m