A rota da China

Quando o veneziano Marco Polo chegou à China pela primeira vez, em fins do século 13, comerciantes cristãos e árabes já faziam fortuna na Rota da Seda, que desde muito tempo ligava Oriente e Ocidente, apesar das diferenças de raça e religião. Mas ninguém nunca havia contado ao mundo como era realmente aquele país vasto e distante, misterioso até para seu próprio imperador, Kublai Khan, que pouco antes decidira deixar a Mongólia para se estabelecer por ali. Nomeado emissário do soberano, Marco Polo esquadrinhou os domínios chineses por 16 anos, descrevendo um mundo de costumes bárbaros, mas também de maravilhas e riquezas inimagináveis. Hoje, a impressão que a China provoca no viajante não é tão diferente. Embora a globalização tenha o poder de uniformizar tudo em todo lugar, a China ainda conserva um enigma que só pode ser decifrado se visto de perto – se é que pode ser decifrado. É uma ditadura comunista e uma potência capitalista, e parece saber cultivar o pior e o melhor dos dois mundos. É poluída, congestionada, neurótica – mas em todo canto há alegres grupos dançando nas praças ou reunidos, animados, em torno de fumegantes barracas de comida. Há cidades acolhedoras, como Guilin e Suzhou, e megalópoles futuristas e ricas, como Xangai e Hangzhou. Seus tesouros históricos, em Pequim ou Xian, são tratados com um misto de rigor e desdém – uma contradição que se estende ao seu povo, que, malandro, pode ser muito gente fina. Como Marco Polo, é fácil se encantar numa jornada China adentro e, como ele, experimentar um pouco a sensação, tão rara, de se sentir à vontade num mundo tão diferente.

PEQUIM
Capital de grandezas, de árduos caminhos e tira-gosto de escorpião

Foi em Pequim que Kublai Khan acomodou suas quatro mulheres (e um bom tanto de concubinas) quando moveu da Mongólia para a China o trono do seu império. A cidade chamava-se, então, Cambaluc, ou Daidu (“grande capital”), e Marco Polo anotou em seus relatos que a ideia era fazer dela um “grande mercado”. Entre todas essas grandezas do passado, o melhor jeito de começar a jornada pela China moderna é mesmo pelo centro do poder desse país que, desde aquela época, adora uma mercadoria.

A parada é na Cidade Proibida, sede de governo e residência dos imperadores durante cinco séculos. Agora, ostenta no portão principal, como carteirinha do Partido Comunista, a foto 3×4 gigante de Mao Tsé-tung, o “grande timoneiro” da revolução de 1949 e – a simbologia é clara – fundador da novíssima e poderosa dinastia.

A fachada-carteirada é o ponto convergente da Praça Tiananmen (“paz ce-estial”), que reúne os monumentos mais importantes da revolução – o dos Heróis do Povo e o Mausoléu de Mao. Lugar joia pra fazer desfiles militares (chato lembrar, mas foi lá que os camaradas passaram fogo em centenas de pessoas nos protestos de 1989).

Visitar a praça é programa cívico, daí que ela se encha de grupos escolares e de senhorinhas fofas, pequenas e sorridentes, vindas de remotas províncias do país. Mas ninguém passa aperto: aos 440 mil metros quadrados de concreto da Tiananmen, a Cidade Proibida junta elegantes 720 mil, obra da dinastia Ming, no século 15.

Retângulo cercado de um fosso, a área nobre é fatiada em pátios, que levam a portões majestosos e, além deles, sete grandes salões, 17 palácios e centenas de puxadinhos. A conta fica na casa dos 800 edifícios de madeira vermelho-escuro, com entalhes que desenham milhares de dragões dourados de cinco garras, símbolos imperiais. Só os frisos e suportes coloridos dos telhados deixam qualquer monumento do realismo socialista no tamanco. Quem assistiu a O Último Imperador, de Bernardo Bertolucci, já entendeu a maravilha da coisa toda.

Muitas áreas são fechadas ao público, mas não falta o que explorar. Entre tantas escadarias de mármore, leões de bronze e ladrilhos trabalhados estão, por exemplo, jardins com palacetes que no passado abrigaram (elas) as concubinas. E como certas coisas não mudam, prepare-se na saída para o enxame de ambulantes vendendo “rolex” por US$ 5 e mais um bilhão de quinquilharias.

NA TEIA DE ARANHA

Fora dos muros da Cidade Proibida, Pequim pode ser intimidadora. Em torno da Tiananmen gravitam cinco gigantescos anéis viários, cortados por uma dúzia de vias expressas, que alcançam 14 distritos e dois condados rurais – vista de cima, a capital da China lembra o desenho de uma teia de aranha. Enroscados nela, em meio a incontáveis elevados, túneis e largas avenidas, 22 milhões de plebeus tentam circular.

Não é fácil. O amplo sistema metroferroviário e as largas pistas exclusivas para bikes e scooters elétricas não são capazes de destravar o trânsito, e na China há tantas buzinas berrando quanto chineses no planeta. Nesse ambiente, pedestres estão no nível mais baixo da cadeia alimentar urbana, e é altamente recomendável não confiar demais no verde do semáforo. Quem tem mais pressa passa na frente.

Sinais da riqueza advinda do crescimento econômico alucinado do país nas últimas duas décadas são vistos em edifícios exibidos – caso da sede da CCTV, televisão estatal, e do Estádio Ninho de Pássaro e do Cubo d’Água, construídos para as Olimpíadas de 2008. Ou ainda, do Sky Screen – telão de LED de 250 metros de extensão e 30 de largura que serve de teto para o shopping The Place. Vê-los, contudo, pode ser um problema. Efeito colateral do mesmo crescimento, Pequim quase sempre está envolta em smog – a famosa névoa de poluição que faz com que muita gente não saia de casa sem uma máscara descartável 3M.

Mas não se deixe intimidar. No meio do emaranhado se acham as frenéticas luzes de neon que colorem e animam as cidades asiáticas; os restaurantes populares, enfumaçados de vapor, ruidosos de gente comendo dumpligs e noddles; garotas vestidas com afinco fashion, baby liss no cabelo, desfilando com suas botinhas rosa-choque; gente curiosa, amistosa, escondida atrás da sisudez da capital; e grupos noturnos enchendo as praças para praticar tai chi chuan ou dançar coreografias ao som de música popular. Todas cenas que, alegremente, se multiplicam China adentro.

E muita, muita comida de rua. A farra exótica fica logo ao lado da Cida-de Proibida. À noite, barracas na (altamente turística) Donghuamen Street oferecem, por 5 yuans (R$ 2), espetos de escorpiões (vivos), estrelas-do-mar, bichos-da-seda, gafanhotos, grilos, larvas genéricas, centopeias, morcegos secos, filhotes de pato… Todos a caminho do óleo quente. Sim, há o que comer: lulas inteiras, camarões, lagostins, carnes de porco, vaca e carneiro, todos no espeto também. E frutas se você não se sentir seguro.

Perto, passando a Apple Store, está a Wangfujing Street, calçadão comercial que leva até o pórtico da Wangfujing Food Street – um complexo de vielas decorado com lâmpadas chinesas vermelhas, lotado de gente animada em torno de barracas de comida. O cheiro de óleo e molhos é forte, mas ninguém se importa. À maneira muvucada asiática, é um barato. A gastronomia é mais variada, mas pra que estragar a brincadeira? Em frente a uma das barracas, um sujeito de barbicha avermelhada deslizava com os dentes, um a um, os escorpiões do espeto. “Uariu from?”, quis saber o vendedor. “US”, respondeu o forasteiro, feliz pela atenção geral. “Califórnia?!” Mastigando, o ianque esclareceu as coisas: “Texas”.

Se você não achar graça, sempre haverá pato laqueado em bons e baratos restaurantes – a China é barata. No Hua’s, por exemplo, o prato típico da cidade sai por cerca de 170 yuans (R$ 70), porção para duas a quatro pessoas.

ALTA ANSIEDADE

Não muito longe, ao sul, fica o Templo do Céu, outra realização Ming. No centro de uma escadaria circular de mármore está o também circular Qinian Dian, edifício de três pavimentos que se projeta para o alto. Era de uso exclusivo do imperador, para orações; hoje, é cenário preferido para books de casamento. Todos os dias, as noivas estão lá, lindas, posando com os seus longos vestidos vermelhos ao lado de seus futuros e impassíveis maridos.

Teia de aranha afora, ponha na lista: o Palácio de Verão, imensa área verde para onde a família imperial fugia do calor infernal da Cidade Proibida; e as tumbas de 13 imperadores Ming, no fim do maravilhoso Caminho dos Espíritos, ladeado de chorões e estátuas solenes. Valem horas de visita. Só que a ansiedade aponta para outro lugar.

Setenta quilômetros a noroeste, vencidos em uma estrada margeada por montadoras de carro e plantações de maçã, chega-se a Badaling, no Con-dado de Yanqing. Ali fica o trecho mais bem preservado e preparado para receber turistas em busca de uma selfie no que chamamos de “A Muralha da China” – lá, simplesmente, Grande Muralha. Já a distância, o coração palpita ao vê-la serpenteando pelas montanhas cobertas de vegetação que, no outono, ganham aquele degradê colorido.

As primeiras fundações da muralha remontam ao século 3 a.C., mas a megaconstrução de quase 9 mil quilômetros de extensão, reforçada e remodelada, é coisa… dos Ming. Dinastia que, já deu pra notar, botou muito chinês pra quebrar pedra.

A infra para visitantes é de primeira, mas não vá esperando vida fácil. A estrutura aberta à visitação compreende cerca de 4 quilômetros, ao sul e a norte, pontuados por 16 guaritas. Entre elas, degraus ralos e inclinações de até 45 graus mais apropriadas para soldados e cavalos, não para turistas. Leve água.

Os corrimões de metal, instalados recentemente, ajudam, mas o passeio pode botar casamentos a perder. “Você espera ficar velho pra passear, depois não aguenta”, ouvi uma brasileira dizer diante do seu senhor, bem à vontade encostado na parede baixa de tijolos. Alguns metros adiante, já sentada na escadinha gasta, uma americana foi taxativa no daqui-ninguém-me-tira: “I won’t go anywhere!”

Em casos dramáticos assim, o melhor é tomar um teleférico já no sopé. Ou embarcar no monotrilho que contorna a montanha. Mas, de novo, pra que estragar a brincadeira? Por duro que seja, sobra gente disposta a pé: nórdicos corados, coreanos barulhentos, garotas corajosas de salto alto, crianças felizes da vida e senhores de meia-idade falando em alto e bom mandarim em celulares do tamanho de um tablet. E um bando de gente grafitando, a ponta de chave, ideogramas nos tijolinhos da muralha. Tem pouco espaço já.

A volta pode ser amena: há passarelas e escadarias modernas ao largo entremeadas de pracinhas e pits de piquenique. E é bom avisar: se o dia estiver particularmente poluído, o smog transforma os trechos mais distantes da muralha em silhuetas embaçadas. Não é de cortar os pulsos, mas pode ser fatal para aqueles casais em crise.

BOX: A vendedora de roupas falsificadas

XIAN
Onde se vê um exército de mais de 2 mil anos, mesquita e canelas de cordeiro

Duas horas de voo, 1200 quilômetros a sudoeste, levam à província de Shaanxi e a uma era longínqua. Se Pequim foi o mais duradouro centro do poder no milênio passado, Xian guarda o status de primeira capital da China unificada. A cidade chamava-se Changan (“paz perpétua), e foi nos seus arredores que, no século 3 a.C., o imperador Qin Shihuang fundou o império Qin. Ou Chin. Coloque um “a” no final. É isso aí.

Violento, cruel, obcecado pela imortalidade, Qin ordenou a construção do inacreditável e hoje famoso exército de guerreiros de terracota para protegê-lo dos seus muito inimigos no outro mundo. Esquecido durante 2 200 anos, foi descoberto em 1974, quando camponeses, cavando um poço em busca de água, toparam com a cabeça de um soldado de infantaria ainda com os traços de pintura que o coloriam.

O tesouro arqueológico está distribuído em três pavilhões – o principal e mais impressionante reúne os soldados rasos e cavalos em linha de combate. Ao todo, seriam 8 mil peças em tamanho natural. Até agora foram restaurados cerca de 2 mil, que (sinto desapontar os românticos arqueólogos) foram encontrados em pedaços. A única exceção é um arqueiro, que, símbolo de sorte, é o equivalente à Mona Lisa em número de cliques, disparados por turistas que trombam em torno da caixa de vidro onde a estátua está exposta com honras. Perto ficam as armas que acompanhavam os soldados e duas magníficas carruagens de bronze.

As escavações estão longe de terminar. Em muitos pontos, as estátuas seguem cobertas pelos telhados originais; em outros, os telhados removidos exibem apenas cacos espalhados – uma cabeça ali, uma perna acolá, algumas já etiquetadas pelos arqueólogos que, à vista de todos, montam o gigantesco quebra-cabeça.

Mas o maior segredo ainda está para ser desvendado – a tumba do imperador Qin, para onde, dizem, ele levou 48 (elas, coitadas) concubinas junto. Estrategicamente posicionada atrás do exército de infantaria, ela segue intacta, lacrada, embaixo de uma colina que lembra vagamente uma pirâmide. Oficialmente, a China espera uma tecnologia que seja capaz de abri-la sem danificar seus tesouros. Mas muitos chineses, supersticiosos como são, juram que a razão é o medo de que Qin consiga, finalmente, enganar a morte e voltar à vida se a tumba for reaberta. Resíduos dessa história toda podem ser vistos no filme A Múmia: Tumba do Imperador Dragão, em que Qin tem a cara e as ha-bilidades de luta de Jet Li, e os soldados de terracota fazem triste figuração.

BAZAR ÁRABE

Ônibus de turismo sem fim percorrem todos os dias os 40 quilômetros que separam o Centro de Xian do museu-mausoléu. Quando passei por lá, fiquei de cara com o PIB chinês na paisagem formada por centenas de guindastes, cada um encimando um alto prédio residencial em construção. Centenas.

Estar bem de vida é, digamos, um hábito antigo em Xian/Changan. A ci-dade foi, durante séculos, o ponto de partida da Rota da Seda, disputada a canhão pelos mercadores do Oriente Médio e da Europa – os Polo, inclusive. Multiculturalista quando multiculturalismo era um sacrilégio, Xian virou casa de uma numerosa colônia árabe miscigenada. Para quem for às compras, boa sorte na hora de pechinchar: dentro dos (magníficos) muros da Cidade Velha fica o Bairro Muçulmano, onde se espalha um grande bazar, transbordando de gente e mercadorias. No fim desse labirinto formado de ruazinhas e estreitos corredores fica a doida Grande Mesquita, toda chinesa. O minarete é mais um pagodinho, culpa dos engenheiros locais do século 8, que não tinham ideia de arquitetura islâmica.

No calçadão anexo, comida. Chinesas vestindo véus pilotam tachos enormes, servindo yangrou paomo (mistura de pão pita e carne de cordeiro, que pode ser servida com noodles), canela de cordeiro para comer como um neandertal, kebabs generosos, sandubas de pernil… nas lojas, uma infinidade de castanhas e nozes, frutas secas, temperos e grãos… e carrinhos com espetos de todas as carnes, dumplings e noodles com massa feita na hora… e doces árabes, cuja massa cozinheiros exibicionistas trançam e socam, com martelos enormes, em plena calçada, no meio do alarido. Por favor, não coma na KFC que fica logo adiante.

Pra circular, abuse do táxi. Estatais na China inteira, são seguros e baratos: em Xian, a bandeirada sai por 7 yuans (R$ 3) mais 1,50 (R$ 0,60) o quilômetro. Se tempo houver, anote no itinerário: Torre do Sino, Torre do Tambor (lindamente iluminados à noite) e Pagode do Ganso Selvagem, no templo onde monges budistas – com a paciência correspondente – rezam diante de cabeças e máquinas fotográficas espichadas porta adentro.

Box: a caligrafia da dona da casa de chá

GUILIN
Lugar onde se caçam formas em colinas pontudas e cavernas coloridas

Localizada na região autônoma de Guangxim, na fronteira com o Vietnã, Guilin é o exótico dentro do exótico da China. Quem deixa Pequim e Xian para trás, cortando o país na direção sul, vê tudo se transformar: o clima úmido e quente, as etnias locais de traços nitidamente distintos e a vegetação tropical colocam o viajante na paisagem do Sudeste Asiático. O aeroporto, modesto, combina com o skyline de prédios baixos por força de lei para que o mundo veja a vastidão de picos de rocha calcária (carste) cobertos de vegetação que fazem a fama de Guilin mundo afora. Se você chegar à noite, pode ver suas imensas e negras silhuetas no horizonte – incluindo a famosa Colina da Tromba do Elefante, um dos símbolos da cidade.

À noite, vai perceber também outra curiosidade local. Em todo canto estão as mangueiras xing ling de LEDs coloridos que a China despacha para o planeta inteiro. No aeroporto, nos edifícios, nas árvores… Vi pedaços piscando no fundo de oficinas mecânicas e até mesmo na lateral de uma scooter. Parece Natal. É bizarro. Mas até que não fica mau.

Diferentemente de muitas cidades chinesas, a economia de Guilin vive praticamente só do turismo. A principal razão fica a 40 quilômetros do Centro – já deu pra notar que “perto” dificilmente se aplica a muitas das atrações turísticas da China. A esticada aqui leva à cadeia infindável de picos cobertos de vegetação que se es-tende nas duas margens do Rio Li. Se o dia for bom, é possível ver as montanhas refletidas na água em que chineses de chapéus pontudos de palha, ladeados de corvos marinhos, conduzem barquinhos de bambu. Paisagem – vamos dizer dessa maneira – para colocar em situação difícil o materialismo histórico ateu.

Todo dia, de manhãzinha, uma frota de barcos de três andares, com deques panorâmicos, parte para um cruzeiro de quatro horas, com almoço (leve seu lanche – a qualidade não é das melhores) incluído. A brincadeira aqui é achar formas nas montanhas ou na composição delas, vistas de ângulos específicos ao longo do trajeto. Tromba de elefante (aquela), coroa imperial, cabeça nariguda, pata de cabra, nove cavalos em um paredão (essa é meio difícil de engolir). Outra coisa boa de imaginar: todo mundo desaparecendo subitamente. Para que você, como Emma Watson e Edward Norton no filme O Despertar de uma Paixão, pudesse navegar vagarosamente em um barquinho, sem balbúrdia. A luz da tarde cairia bem também.

O passeio termina em Yangshuo, vilarejo que, na paisagem e na arquitetura, dá uma boa ideia do que seria a “China profunda”, mais autêntica – com a vantagem de ter desenvolvido uma boa infra turística de hotéis, bares e restaurantes. Nas imediações, dá até para ver um dos arrozais que não estão escondidos país adentro.

CAVERNA PSICODÉLICA

A geologia calcária da região é responsável por outra atração turística master de Guilin, a Caverna da Flauta de Cana (Ludi Yan). Ali, formações rochosas espetaculares são iluminadas com as benditas mangueiras de LED multicoloridas. É preciso dizer de novo: por incrível que pareça, fica bom.

Debaixo da terra, o exercício de imaginação prossegue. Ampla, esculpida durante milhões de anos pelas infiltrações de água no solo de rocha calcária, a caverna de 250 metros de extensão tem mais um tanto de for-mas a serem decifradas nas gigantes estalactites e estalagmites derrama-das no percurso: leão, rã, boneco de neve, flauta, casal de noivos, vegetais que não acabam mais, cogumelos gigantes… Na trip, é fácil ser enganado pelas formas esculpidas pela mão humana desde o século 8, com o talento tipicamente chinês para a falsificação.

De volta à cidade, a boa na noite tropical é aproveitar a brisa à beira do Lago Shanhu, onde estão os lindos pagodes gêmeos do Sol e da Lua, cada um com 40 metros de altura. Da doca saem barcos navegando pelos canais que interligam outros três lagos e dois rios, incluindo o Li. Uma opção é se enturmar por lá mesmo, na pracinha, lugar de shows que fazem a alegria dos chineses, que adoram dançar em grupo ao ar livre – uma cena que se repete em cada cidade da longa jornada.

HANGZHOU
Cidade de lago plácido, de todos os luxos e Budas em todas as poses

Para os lados do Levante, como diria Marco Polo, está Hangzhou, que naqueles tempos se chamava Quinsai. “É a mais bela e nobre cidade do mundo”, escreveu o veneziano, encantado com as riquezas da capital da dinastia Song (séculos 10–13 d.C.). Hoje capital da província de Zhejiang, Hangzhou conserva a beleza e a opulência. Dessa vez, Mao Tsé-tung precisa ceder o mérito a Deng Xiaoping, o líder que promoveu a abertura econômica da China nos anos 1990.

Com cerca de 10 milhões de habitantes, a cidade concentra indústrias privadas de eletroeletrônicos e têxteis, que tomaram conta do país depois que os comunistas acharam que um pou-co de capitalismo não faria mal… Pouco é modo de dizer: Hangzhou é, por exemplo, a sede da Alibaba, a maior empresa de e-commerce do planeta. Ponto de partida da rota da seda virtual contemporânea, a companhia intermedeia a venda de tranqueiras de US$ 1 via web até insumos para empresas do mundo todo. Em 2014, chegou chutando a porta na Bolsa de Valores de Nova York e mostrou resistência à crise da bolsa de Xangai no mês passado. (Chato lembrar também, mas boa parte dessa pujança econômica deriva da mão de obra de gente trabalhando em condições análogas à escravidão, coisa que o governo chinês vive jurando coibir.)

Novos-ricos, à frente das pequenas e médias empresas, não faltam. Os sinais estão em toda parte: nos equipamentos urbanos, nos edifícios, nos carrões e em shoppings centers de luxo, como o imenso Hangzhou Tower, que abriga exclusivamente lojas como Gucci, Cartier, Louis Vitton, Prada, Rolex (não os de US$ 5, bem entendido.)

Nessa cidade nervosa pela perspectiva real de ficar milionário está o plácido Lago Oeste, abastecido pelo Rio Qiantang. Não passou despercebido por Marco Polo. É o coração da cidade, com 8 quilômetros quadrados entrecortados de pontes de pedras, cercados de alamedas e com vista para templos, pagodes e colinas verdes. Pela Su Causeway, dá pra atravessar as águas cheias de carpas e de flores de lótus; ou de barco, passando por três pagodes pequenos dispostos em triângulo, cada um com cinco aberturas. Em setembro, no Festival de Meio-Outono, lâmpadas dentro deles projetam a luz de “30 luas cheias”, 15 delas refletidas na superfície.

Lindo já no nome é o budista Templo da Alma Escondida, um dos maiores, mais antigos e mais ricos em imagens de Sidarta da China. No entorno dos pavilhões, espalham-se outros cerca de 300 Budas, esculpidos nas rochas, de todos os tamanhos e tipos: em pé, sentado, em posição de lótus, gordo, magro, feliz… Monumento involuntário de tempos sombrios, dá para ver que algumas imagens foram raspadas pe-los guardas vermelhos de Mao nos dez anos (1966–1976) da Revolução Cultural, que se ocupou em destruir sistematicamente traços culturais do passado.

Para a lista: os lindos campos de chá-verde de Longjing, onde, dependendo da época do ano, dá para acompanhar a colheita; e o Pagode das Seis Harmonias, maravilhoso mas desarmonioso nos degraus incrivelmente íngremes e, quando passei por lá, no soldado empunhando, não muito zen, uma metralhadora.

Box: o jovem homem de negócios

SUZHOU
Onde se atravessam pontes de pedra e se veem multidões de dançarinos

Na foz de Rio Qiantang desagua outra obra megalômana. Com 1 800 quilômetros de extensão, o Grande Canal é o maior e mais antigo rio artificial do mundo, ligando Pequim – lá no norte – com o Mar da China Oriental. Foi construído no século 7, desta vez com mão de obra arregimentada pela dinastia Sui, para transportar mercadorias.

Das cidades cortadas pelo canal, nenhuma se compara a Suzhou. A apenas uma hora de trem de alta velocidade de Hangzhou, tem quase metade da sua área coberta de água – o que a levou a ser chamada de “Veneza do Oriente”. A alcunha não existia na época do veneziano Marco Polo, que, exagerado, dizia que a cidade possuía 6 mil pontes de pedra. Mencionava, também, que os habitantes “têm ricas sedas para vestuário”. Por aqui, ainda dá para comprar seda 100% legítima, certificada pelos camaradas.

Não se sabe se é a quantidade de água ou se são as casinhas antigas margeando os canais menores, mas Suzhou é uma alegria só. Os grupos de dançarinos noturnos ganham número nas praças que beiram o canal, e as ruazinhas que se espraiam nesse complexo urbano arcaico, cheio de pequenos restaurantes populares, criam um clima mais amistoso. Não que seja pequena: a cidade tem áreas modernas, que abrigam coisa de 5 milhões de habitantes, muitos trabalhando em gigantes como a Lenovo. Ainda assim, em um país em que a ideologia serviu de álibi para crimes contra a tradição, e hoje quase que totalmente focado nas promessas de riqueza do futuro, a preservação é tocante. Suzhou é também uma cidade de jardins seculares – são dezenas de, intactos, patrimônios da humanidade pela Unesco.

Um dos mais famosos é o Jardim do Administrador Humilde. A arquitetura clássica, que combina pavilhões, pedras, árvores, pontes e lagos, é coisa do século 16. Menorzinho, o Jardim do Pescador (ou Mestre das Redes) reúne os mesmos elementos em miniatura. E é mais antigo – remonta ao século 12. Remodelado várias vezes, trocou de donos outras tantas até virar “propriedade do povo”. Hoje, bandos de estudantes de arte se sentam onde podem no entorno para rascunhar a paisagem em grandes sketchbooks.

A Veneza do Oriente tem, de quebra, sua torre de pisa. Mais distante (depois de uma periferia meio feia) fica Huqiu, pagode de 47 metros do século 10 e que, com o tempo, ganhou uma inclinação de 3 graus. A construção fica no topo da Colina do Tigre Branco. Lá, no remotíssimo século 6 a.C., foi sepultado o rei Helu (mais famoso que ele é um dos seus generais, Sun Tzu, o primeiro best-seller da história, com seu A Arte da Guerra). Segundo a lenda, três dias após o funeral, um grande tigre branco postou-se no alto da colina para guardar a tumba do rei.

Box: um prato de boa comida e uma foto

XANGAI
Metrópole futurista, de passado glamouroso e onde Buda deita na mercadoria

Os símbolos de poder e de pujança econômica, temperados tanto com traumas históricos quanto com maravilhas, ganham outra dimensão em Xangai. A cidade mais populosa do mundo, com cerca de 25 milhões de residentes e mais um par de milhões flutuantes, é um assombro. E não é de hoje. Cidade secundária politicamente nos tempos imperiais, era a casa da mãe joana europeia e americana por causa dos seus portos. Aberta para o mundo já no século 19, Xangai era uma prévia da China do 21.

Os ventos vindos do mar dissipam de vez a névoa de poluição que, de Pequim para o interior do país, nunca desapareceram completamente no meu trajeto. Com o céu limpo, todos as lentes convergem para Lujiazui, o distrito financeiro. Se a Cidade Proibida é uma carteirada de autoridade, o skyline construído na área nova de Pudong é o cartão de visitas chinês para seus parceiros/rivais/comparsas em Wall Street, Londres, Cingapura e Hong Kong.

Vista do calçadão do Bund (o cais histórico à beira do Rio Huangpu), a paisagem impressiona tanto de dia quanto de noite, quando os edifícios gigantescos ganham todas as cores asiáticas – um tentando superar o outro em altura, ousadia arquitetônica e megalomania no geral. Quase pronta está a Shangai Tower, uma estrutura “torcida” de 121 andares, servidos por elevadores disparados a 18 metros por segundo. Os 632 metros de altura garantem o caneco de segunda mais alta do mundo.

In loco, Lujiazui joga o turista num desenho dos Jetsons. Se os carros ainda não voam, eles podem rodar entre jardins obsessivamente cuidados, à margem de calçadas perfeitas, em ruas impossivelmente limpas. Acima deles, pedestres circulam em um extenso complexo de passarelas largas, que interligam os edifícios-celebridade, restaurantes, praças arborizadas e shoppings, cenário de uma daquelas utopias improváveis em que a humanidade dá certo.

PÉROLA DO ORIENTE

Certo ou errado, é lotado. Crianças e marmanjos adoram o Oceanário e a muvucada torre de TV Pérola do Oriente, cujo observatório a 259 metros, instalado num chão de vidro, desafia vertigens – e ouvidos, tamanha a gritaria gerada pela adrenalina. É divertido mesmo. Acima, ainda fica um restaurante 360 graus, giratório, e a Cápsula Espacial, outro ponto de observação, desta vez aproveitando a vibe futurista do conjunto.

Um observatório ainda mais espichado (até outro dia, era o mais alto do mundo) é o do World Financial Center, cujo desenho lembra uma sacola (sic) comprida. Se tiver bala, o hotel Park Hyatt fica no 87º andar; se não, dá ao menos para jantar no 100 Century Avenue Restaurant, no 91º, cheio das janelas; no mínimo, vá de observatório mesmo. Da alça da sacola se veem os pequeninos barcos de turismo navegando no Huangpu e, além, as camadas de tempo da história de Xangai.

Dali, é a vez de ver o skyline do Bund, centro financeiro do século 19 que prosperou na antiga área de concessão britânica. Em contraste, é um choque de estilos. A paisagem é formada por uma fileira de edifícios elegantes – entre eles o art déco Peace Hotel, referência de glamour nos anos 1930, palco de bandas de jazz e celebridades de antanho. Bem na esquina começa a Nanjing Road, calçadão colorido, frenético e superpovoado que vai dar na Praça do Povo e no Museu de Xangai.

Não muito longe fica Yu Yuan, lindo jardim Ming engolfado por um ruidoso bazar pega-turista (segurem carteiras e bolsas). No Centro, elevando-se de um lago com gordas carpas, fica a Casa de Chá Huxinting, aonde se chega por uma ponte em ziguezague – estratégia para afastar os maus espíritos, que, segundo os chineses, só sabem andar em linha reta. Por ali fica a Pedra de Jade, oca, com 72 buracos: quando chove, é chafariz mágico; se aceso um maço de incensos dentro dela, é chaminé idem.

O famoso Templo do Buda de Jade fica mais ao norte. Ativo, com os monges sempre pacientes, tem Budas dourados de várias encarnações e duas joias vindas da Birmânia: a primeira, uma pequena estátua de Sidarta, esculpida em uma única pedra de jade. É linda de desencarnar. Fica numa sala com plaquinhas com o nome de ricaços, que de-sembolsam, pelo privilégio, 50 000 yuans (R$ 21 000) anuais. Talvez por isso, este é um dos poucos lugares da China em que fotos não são permitidas. Em outra sala, a segunda joia do complexo: uma estátua de Sidarta reclinado, cabeça apoiada sobre o cotovelo. Parece estar descansando. Mas não: está morto, no momento de atingir o nirvana. Sorte dele: a imagem fica perdida em meio a uma montanha de souvenires à venda, que provam, como nunca, a sem-cerimônia chinesa aos artefatos religiosos.

Por último. Mais longe, para os lados do antigo aeroporto internacional da cidade, fica o Zoológico. Você vai ver que gênios do comércio, líderes comunistas ou imperadores e suas concubinas não são páreo para um panda mastigando seu bambuzinho.

Box: o gentil gigolô do calçadão

Viagem e Turismo, agosto de 2015
© Almir de Freitas