No mundo do pós-guerra, foi Jean-Paul Sartre quem disse que a liberdade é a condição inescapável do ser humano: são suas escolhas que definem sua existência, marcada por uma imensa – e desconfortável – responsabilidade
Entre a concepção de autonomia política e a noção de livre arbítrio, a liberdade sempre ocupou papel central na filosofia. Mas foi no século 20, destacada no então recente arcabouço existencialista, que ela chegou à cultura mais geral, expressa não apenas nas obras teóricas de Jean-Paul Sartre (1905-1980), mas também nos seus romances e peças de teatro. Dali em diante, naquele mundo que emergia das ruínas da Segunda Guerra Mundial e ensaiava uma era de intelectuais-celebridades, ganharia ares pop.
Foi na Paris de 1945, num auditório com cadeiras disputadas literalmente a tapa, que Sartre afirmou, na conferência O Existencialismo é um Humanismo, que o homem estava “condenado a ser livre”, ideia antes apresentada em O Ser o Nada (1943). Entre a obra filosófica e a conferência, outra frase sua, “o inferno são os outros”, havia causado sensação, na estreia da peça Entre Quatro Paredes, em 1944, ainda com o país ocupado pelos nazistas. A liberdade, então, era tudo o que os franceses consideravam distante.
Não apenas pelos anos de censura e perseguição empreendida pelos nazistas na pátria da liberté, na terra do Iluminismo. Mas também porque, naquele ano, o mundo tinha sido informado do genocídio levado a cabo pelos patrícios de Kant, Hegel e Heidegger nos campos de concentração. O próprio Sartre havia passado uma temporada num campo de prisioneiros alemão – sem muitos dramas, é verdade; o máximo sofreu um chutão na bunda desferido por um soldado alemão, num dia em que se atrasou para o toque de recolher.
A ideia de que somos necessariamente livres foi um curto-circuito que, em vez de arruinar o conjunto, o energizou. No auditório das Centrais, na rua Jean-Goujon número 8, em Paris, o autor do romance A Náusea (1938) e dos contos de O Muro(1939), subiu ao palco para defender o existencialismo da saraivada de críticas, tanto de católicos quanto de comunistas, e para anunciar a boa-nova intelectual do pós-guerra.
Em linhas gerais, a concepção sartreana da liberdade se assentava no pressuposto de que o ser humano é a única criatura para quem a existência (existir) é anterior à essência (ser). Quer dizer: o nosso destino não é predeterminado pela natureza – muito menos, ele assinala, pela “inteligência divina”. “O que significa dizer que a existência precede a essência?”, pergunta. “Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. (…) O homem é não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência.” (Não, a psicanálise não orna muito bem com esse tipo de pensamento).
O ser humano, frisa Sartre, define-se pelo o que faz, o que ele projetar ser, por suas escolhas. Daí em diante, é preciso falar em consequências – tanto dessa ideia basilar quando da própria liberdade avassaladora que ela anuncia. Em primeiro lugar, ela incorre no fato de que cada um de nós é total e integralmente responsável não apenas por nossos atos, mas também por aquilo que somos. O que se desdobra em outras e mais profundas consequências.
TUDO É PERMITIDO
Em um mundo sem Deus e sem natureza humana, o homem é plenamente responsável não apenas por si, mas também por todos os homens. “Não há dos nossos atos”, diz Sartre, “um sequer que, ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser.”
Tratava-se, também, de rebater as acusações de que o existencialismo incitava as pessoas ao “imobilismo”. Era bem o contrário: a ideia de que as escolhas individuais estavam conectadas à escolha de uma imagem da humanidade seriam fundamentais para a ideia de engajamento que marcaria toda a obra e a trajetória de Sartre.
De certa maneira, a própria vida do escritor e filósofo ilustraria a força do exercício pleno dessa liberdade a que estamos, por assim dizer, presos. Exercício que com frequência significou acumular erros monumentais. À turras com os comunistas naquele momento, Sartre se transformou num dos mais ferrenhos defensores da URSS. Chegou a proibir a encenação de uma de suas peças mais críticas ao stalinismo, As Mãos Sujas (1948), em favor da ideia do nascimento de um “novo homem”, o soviético, no período em que escreveu a peça Nekrassov (1955). Uma fase não muito bonita, que lhe custou, por exemplo, a amizade com Albert Camus.
Tudo isso para, em 1956, voltar atrás no idílio bolchevista após a invasão soviética à Hungria; acreditar, em 1959-60, que a experiência cubana seria muito diferente; e, no mundo particular de 68, quando era claro o caráter totalitário da revolução cultural chinesa, abraçar o maoísmo.
Na vida pessoal, Sartre também personificou o exercício radical dessa liberdade individual, com sua distinção entre amores “contingentes” e amores “necessários”. Ninguém ignora, por exemplo, que a relação aberta com Simone de Beauvoir, mais a opção militante de não ter filhos, era uma projeção de um ideário de humanidade que contribuiu em muito para os fundamentos da contracultura e da revolução sexual. Mas eram escolhas que não estavam isentas de impasses, contradições e até certa crueldade. Ninguém falou que seria fácil.
AÇÃO, OTIMISMO
A ideia de que a liberdade é um peso não foi inventada por Sartre – ela já tinha sido enunciada à larga. Na formulação da ideia de livre-arbítrio, no século 5, Santo Agostinho deixou clara a responsabilidade que recai sobre o homem. Na política, o francês Étienne de La Boétie, havia apontado, no século 16, o dedo para o conforto da “servidão voluntária” como a razão da opressão dos Estados. Em Homem e Super-Homem (1903), Bernard Shaw já tinha dito com todas as letras: “Liberdade significa responsabilidade. É por isso que tanta gente tem medo dela.” Até o nosso senso comum (cristão) diz que é por aí mesmo.
Com Sartre e seu existencialismo, entretanto, o curto-circuito é completo. A angústia da responsabilidade é acompanhada do desamparo pelo peso adicional da ausência de Deus. E do desespero: isto é, pela ausência de esperança do homem de que sua escolha é a correta. Não há, diz o filósofo, uma moral geral pela qual se guiar.
Pessimismo? Jean-Paul jura que fala de otimismo quando, ao aceitar que a vida não tem sentido nenhum a priori, cabe a nós inventá-lo, pela ação. Em São Genet, Ator e Mártir (1952), ensaio sobre a vida do escritor marginal Jean Genet, Sartre ilustrará esse modelo existencialista. Foi nesse texto caudaloso, exagerado como era de hábito, que cunhou outra frase que ficou famosa, síntese e legado para quem a condenação à liberdade significava viver plenamente. “O importante”, escreveu, “não é aquilo que se fez do homem, mas aquilo que ele faz daquilo que fizeram dele.”
Bravo!, abril de 2018
© Almir de Freitas