Amor, Pobreza e Guerra reúne os textos que fizeram de Christopher Hitchens um dos melhores jornalistas atuais
Num certo dia de novembro de 2001, o jornalista britânico Christopher Hitchens descobriu que tinha sido “excomungado” da esquerda. Entre suas faltas estava o fato de ter constatado, in loco, que a zona de exclusão aérea no norte do Iraque havia livrado os curdos do país do horror genocida de Saddam Hussein; de ter atacado diretamente o “fascismo islâmico” no 11 de Setembro sem antes fazer o mea culpa em relação à política externa americana; e de ter louvado a queda do Talibã no Afeganistão. As coisas só piorariam mais tarde, quando saudou a tomada de Bagdá depois de dizer que as bases da Al Qaeda estavam, sim, sob a proteção desses dois regimes. Os liberais seus companheiros não o perdoaram.
Radicado nos Estados Unidos, Hitchens é um jornalista que já percorreu as zonas mais críticas do mundo fazendo reportagens para veículos como The New Yorker, Vanity Fair e The Guardian. Parte de seus artigos e ensaios estão reunidos em Amor, Pobreza e Guerra, livro que, lançado agora no Brasil, explica muito as reações que esse ex-trotskista erudito, polêmico e mortalmente inteligente provocou entre seus pares. Capaz tanto de abordar questões delicadas na trajetória de Winston Churchill quanto de discorrer sobre as obras de Aldous Huxley, Jorge Luis Borges e Bob Dylan, nunca deixou, como colunista e repórter, de exercer a sua mais evidente característica: não contemporizar com a imbecilidade ou a má-fé. Bate-se tanto com as pilantragens de Michael Moore em Fahrenheit 9/11 quanto com os casuísmos de Noam Chomsky, que sempre está pronto a relativizar as maiores atrocidades perpetradas por terroristas e regimes sanguinários.
Nem sua histórica oposição aos governos Blair, Bush pai e filho e Clinton (esse quase sempre poupado tanto quanto possível pelos seus colegas liberais) livrou Hitchens de seu Processo de Moscou informal. O que ele constata lá pelas tantas não é tão novidade assim. Se existe algo que ex-trotskistas fazem bem é reconhecer os menores odores stalinistas no ar. Citando Orwell, um especialista no assunto: “(…) quando se estudam atentamente os escritos dos jovens intelectuais pacifistas, descobre-se [que eles] se dirigem quase que inteiramente contra a Grã-Bretanha e os Estados Unidos”. A afirmação é de 1945.
Quando soube de sua “excomunhão”, o ateu radical Hitchens anotou que recebeu a notícia “com satisfação”. Talvez algo parecido com a experiência “luciferiana” vivida poucos meses antes, quando, a pedido do Vaticano, testemunhou contra Madre Teresa de Calcutá — cujo trabalho de caridade havia acompanhado para uma grande reportagem — no seu processo de beatificação e canonização (“Ela não era tão amiga dos pobres quanto da pobreza”, escreve). Militante do dissenso, Hitchens não esconde, tanto num caso quanto no outro, o prazer de ser um advogado do diabo “pro bono”.
Suplemento Flip BRAVO!, agosto de 2006
© Almir de Freitas