Cinco livros recuperam a produção de Millôr Fernandes, um intelectual que nunca se cansou de rir de si mesmo e do Brasil
Por um daqueles infortúnios da vida, não são muitos os que, na história do pensamento brasileiro, atravessaram os anos militando no jornalismo ou mercado editorial sem se encaminhar para dois destinos clássicos: ou a pusilanimidade abraçada diante do sucesso momentâneo ou o ressentimento de quem perde o bonde da história. Existem ainda os que conseguem a proeza de reunir os dois, sentados em louros conquistados por razões que, depois de tantos anos, ninguém se lembra mais. Mas eles seguem por aí, vagando como figuras pálidas pelas colunas da imprensa e pelas ruínas de um país que já não existe.
A esses costuma-se qualificar, um tanto levianamente, de lenda disso ou daquilo. Por economia de tempo e de espaço, por preguiça ou seja lá o que for, nem alguém como Millôr Fernandes escapa, apresentado assim, lenda do humorismo brasileiro. Mas isso é insuficiente, e é preciso despender um tempinho para conhecer um pouco mais desse carioca do Méier que, aos 82 anos, vai completando 70 de carreira trabalhando 14 horas por dia em seu estúdio em Ipanema. Ali, chega pontualmente às 8h para dedicar-se às suas leituras, à página de humor que assina na revista Veja, ao seu sitee (ou saite, como ele prefere grafar) semanal, que já completa seis anos no ar, e atualmente à tradução de Celestina, peça do século 15, escrita em espanhol arcaico por Fernando de Rojas (1470-1541).
As lendas Millôr deixa para os fatos e as circunstâncias que, abarcados tantos anos, ficaram para trás nessa longa trajetória, em que usou o máximo de recursos de expressão possível: o haicai, o aforismo, a crônica demolidora e iconoclasta, a fábula, o desenho, o trocadilho elevado à forma de literatura. O mesmo vale para os ambientes: não importa se no trabalho duro de uma pequena (inexistente às vezes) ou grande redação, ou no retiro monástico onde fez as traduções de Shakespeare, Molière e clássicos da Antiguidade — no seu portfólio já estão, entre outras, versões em português de Rei Lear, Hamlet e Medéia.
À parte o trabalho de tradução (é poliglota autodidata), de tudo isso se pode ver um pouco nos cinco livros programados para este ano pela editora Desiderata. Se eles não revelam um Millôr muito diferente daquele que está na ativa (a culpa é dele, vejam bem), têm o mérito de reinseri-lo naquele contexto especial em que um homem se revela diante da história. O primeiro volume, A Verdadeira História do Paraíso, é exemplar. O livro é a reedição de uma história ilustrada publicada em 1963 em O Cruzeiro, revista dos Diários Associados em que havia trabalhado durante 25 anos, um período em que a tiragem do semanário pulou de 11 mil para 750 mil exemplares. A reação conservadora dos donos na época foi violenta a ponto de publicarem, em sua ausência, um editorial de capa desautorizando-o. Com o boné na mão, processou o grupo. E ganhou.
E NÓS, HEIN?
Mas uma coisa é bancar a vítima diante dos poderosos, outra é apontar o dedo para as nossas próprias mazelas. E imbecilidades, pois não? Naturalmente, no clássico Que País É Este?, de 1972, Millôr não poupa os lacaios da ditadura, os militares de baixa e alta patente, os funcionários públicos de todas as esferas, os empreiteiros sempre querendo dar um jeito de destruir o Rio de Janeiro, os corruptos, os especuladores e demônios de toda sorte. Mas estão lá também a nossa falta de lógica, esse nosso jeitinho de ser, pulando aqui e acolá entre um sambinha e um futebol, uma hipocrisia sem qualquer custo e outras tolices — frequentemente com mulheres. Somos, como escreve, “um país onde há a maior possibilidade de se criar um mundo inteiramente novo. Caos não falta”.
É dessa desordem atemporal que nos cerca, mas na qual não prestamos atenção, que Millôr extrai o melhor da sua obra: no traço ou no provérbio, anárquicos apenas no modo como se apresentam, está a decifração de quanto somos, além de tolos, risíveis. No volume 30 Anos de Mim Mesmo, que reúne a produção do autor de 1943 a 1972 em diversas publicações, como a revista nanica O Pif-Paf, que durou apenas oito números, e o tablóide O Pasquim, esse caos se apresenta sobretudo nas suas obsessões formais. Ele inventa verbos, conjuga os “altamente irregulares” (“eu namoro a filha do prefeito; tu és noivo da cunhada; ele casou com a cozinheira”), brinca com os eufemismos e, uma década antes da poesia concreta, comete as suas “poesias cinéticas”, em que texto e imagem se tornam uma coisa só.
PERGUNTAS CRETINAS
Mas um dos grandes destaques — que vêm num encarte especial nessa edição — são aquelas que se tornaram uma das marcas registradas de Millôr: as “perguntas cretinas” (tornadas “ministério”), que, sem nenhuma vergonha de serem cretinas, levam ao limite do ridículo os múltiplos significados da língua portuguesa. “Marmelada falsificada é marmelada?”; “Um desmaio pode acontecer em junho?”; “Quando o Disney faz um desenho ruim é um desenho desanimado?”. E há as que já vêm com as “respostas engatilhadas”: P. “Devagar se vai longe? R. Você quer ir comigo, meu bem, bem devagarinho?”. Ou: “P. Essa garota fantástica, por que não vem assombrar a gente de noite? R. Por quê, hein?”.
É evidente que quem não se intimida com o nonsense para vasculhar esses desvãos da língua, da cultura — e de nós mesmos —, tampouco vai se impor alguma censura com o politicamente correto, essa forma autoritária, orwelliana, de medir as palavras e jogar para baixo do tapete o que temos de “feio” — e sabe Deus lá o que é feio. Se fosse assim, como é que Millôr poderia ter escrito as suas “fábulas fabulosas”, também presentes em 30 Anos de Mim Mesmo? Da patrulha, nem as do pobre do Esopo (Fopos de Esábula, em milloriano) escaparam nas suas singelas morais. Que dirá as de Millôr.
A produção do autor nos dois gêneros é tão vasta que para elas ainda foram destinados volumes separados, que serão lançados na sequência: Ministério das Perguntas Cretinas e Fábulas Fabulosas, este último com textos inéditos e ilustrações do cartunista Angeli. Reunidos, os cinco volumes não são exatamente uma homenagem ao escritor, que não precisa que se convoque o passado para dar coloração, em creiom ou photoshop, a quem segue vendo tanta graça em si quanto no Brasil. Uma qualidade que exige disposição, coisa rara em quem se contenta em ser lenda na vida.
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BRAVO!, outubro de 2006
© Almir de Freitas