A magnitude de Drummond

Reeditada a obra do mineiro que se tornou o maior (e talvez o mais superestimado) poeta brasileiro  (texto escrito com Michel Laub)

Carlos Drummond de Andrade disse certa vez que a correspondência entre Mário de Andrade e o grupo a que ele pertencia em Belo Horizonte na década de 20 era o “acontecimento mais formidável” da vida intelectual da cidade, embora o paulista, estrela da Semana de Arte Moderna, frequentemente “matasse as ilusões” dos jovens artistas, que, com o “coração envinagrado”, reagiam com “injustiças” e “tolices”. Mais de 70 anos depois, quando a editora Record inicia a reedição de toda a obra do poeta, Drummond é possivelmente o mais respeitado e imitado nome da lírica brasileira. Às vezes, superestimado, não pelo inegável valor e genialidade de sua obra, mas justamente pela forma como afirmou e renovou a estética modernista que o barulho da Semana de 22 pôs para funcionar.

Mário de Andrade não tinha como saber disso. Mas, em 1931, é ele quem esboça uma das primeiras interpretações críticas importantes da obra de Drummond, apenas um ano após a publicação de seu primeiro livro, Alguma Poesia. Em Poema de Sete Faces – aquele em que um anjo torto manda Carlos ser gauche na vida –, Mário de Andrade reconheceu de imediato as características que acabariam por identificar o poeta mineiro: a timidez (“Meu Deus, por que me abandonaste/ se sabias que eu não era Deus/ se sabia que eu era fraco”); a ameaça de extravasamento afetivo (“Mundo, mundo, vasto mundo/ mais vasto é o meu coração”); e a inteligência que, ao final, usa o humor para abortar o exagero sem abrir mão da sensibilidade (“Eu não devia te dizer/ mas essa lua/ mas esse conhaque/ põem a gente comovido como o diabo”). Mais tarde, Otto Maria Carpeaux considerou essa inteligência rara, que alia “certa ingenuidade rústica com a mais rigorosa disciplina mental”, a particularidade mais identificável na obra de Drummond.

Tal característica seria apontada em grande parte da crítica que se produziu em torno de seus versos. Um dos aspectos mais evidentes e, ao mesmo tempo, de difícil compreensão é a marca deixada pela infância vivida em Itabira do Mato Dentro – pequena cidade conhecida pela extração de minério de ferro –, onde nasceu filho de um fazendeiro arruinado. “Alguns anos vivi em Itabira/ Principalmente nasci em Itabira/ Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro./ Noventa por cento de ferro nas calçadas/ Oitenta por cento de ferro nas almas”. Longe de qualquer sentimentalismo nostálgico, o que se identificará como grande em sua obra é exatamente a característica de um homem cuja inteligência interroga constantemente os fatos do mundo, ora diretamente dirigida ao passado (no qual Minas Gerais cumpre papel imprescindível), ora indiretamente, no lamento por um presente que desvirtua valores ligados a uma mitologia provinciana, anterior. Em um texto escrito em 1944, Afonso Arinos de Melo Franco enxergou na “visão interiorana” da obra de Drummond o receio de que “lhe passassem a perna”, explicação possível para a sua relutância em expor emoções. Arinos foi outro a apontar a “agudíssima inteligência” do ex-colega do Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, onde tinham como companheiro também Gustavo Capanema, futuro ministro da Educação de Getúlio Vargas, de quem Drummond viria a ser chefe de gabinete entre 1934 e 1945.

Nessa época, já no Rio, o establishment intelectual do país não ignorava o escritor gauche vindo do interior de Minas Gerais que, em 1928, havia protagonizado um “escândalo literário” quando publicou, na Revista de Antropofagia, de São Paulo, o poema No Meio do Caminho (“No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho”). Sobre o tema, quase que profetizando os desvãos da poesia brasileira que viriam, alguns dos quais propiciados involuntariamente por sua própria obra, Drummond escreveu: “Sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais”. A mesma avaliação pode ser feita da unanimidade em torno do “maior poeta brasileiro”, que esconde suas verdadeiras virtudes e seus verdadeiros defeitos.

À margem da histeria ou do entusiasmo referentes a No Meio do Caminho, a persona literária de Drummond, amadurecida nos anos posteriores, incorporava conquistas do Modernismo, como os temas menos etéreos e mais terrenos, mas sem cair em cacoetes da geração que a promoveu – o nacionalismo folclórico, o deboche sem objetivo, um certo fascínio pelo irracionalismo. José Guilherme Merquior, num arrazoado de 1968, afirma que essa renovação, promovida por Drummond e por Murilo Mendes, deve-se ao plano de “inédita complexidade psicológica” na poesia de ambos.

A reedição da obra drummondiana é a oportunidade de rever tais atributos. Os títulos serão publicados individualmente, com novas capas, novos prefácios e novo projeto gráfico, tudo com a ajuda de dois netos do poeta, Pedro Drummond e Luís Maurício Graña Drummond. A Obra Completa da Nova Aguilar, que está fora de catálogo, será reeditada no ano que vem, por ocasião do centenário do autor de Máquina do Mundo, recentemente escolhido por intelectuais (em enquete do jornal Folha de S.Paulo) como o melhor poema brasileiro de todos os tempos: “e tudo que define o ser terrestre/ ou se prolonga até nos animais/ e chega às plantas para se embeber// no sono rancoroso dos minérios,/ dá volta ao mundo e torna a se engolfar/ na estranha ordem geométrica de tudo”, diz um trecho.

BRAVO!, março de 2001

© Almir de Freitas e Michel Laub


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Izaias Buson