À margem dos sertões

Na trajetória de Euclides da Cunha, poesia romântica, jornalismo político e relatos de viagem convergem para a sua obra-prima

Depois do dia 2 de dezembro de 1902, a vida de Euclides da Cunha não seria mais a mesma. Publicado nesse dia, Os Sertões alçaria o então militar reformado, jornalista, ensaísta, engenheiro de campo e funcionário público ao sucesso instantâneo. Escrito a partir da cobertura feita por ele da campanha de Canudos para o jornal O Estado de S. Paulo, o cartapácio de mais de 600 páginas teve os 1,2 mil exemplares esgotados rapidamente, ganhando elogios dos maiores críticos da época – gente como José Veríssimo, Silvio Romero e Araripe Jr. Menos de um ano depois, em 21 de setembro de 1903, Euclides foi eleito com folga para ocupar a cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras. Anos depois, Os Sertões inspiraria obras como A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, e Veredicto em Canudos, de um fascinado húngaro Sándor Márai, que leu o livro numa edição em inglês. “Da literatura brasileira, só conheço Euclides da Cunha”, disse em certa ocasião o argentino Jorge Luis Borges.

Uma obra dessa magnitude, entretanto, pode às vezes se tornar um peso. Numa carta enviada ao jornalista uruguaio Agustín de Vedia, datada de 13 de outubro de 1908, Euclides assim se referia a Os Sertões:  “O livro bárbaro da minha mocidade, monstruoso poema de brutalidade e de força”, e “tão distante da maneira tranquila pela qual considero hoje a vida, que eu mesmo às vezes custo a entendê-lo. Em todo o caso é o primogênito do meu espírito, e há críticos atrevidos que afirmam ser o meu único livro... Será verdade? Repugna-me, entretanto, admitir que tenha chegado a um ponto culminante, restando o resto da vida para descê-lo.” Euclides parecia ter noção da gravidade da anotação: em outra folha, burila e refaz o texto, trocando “críticos atrevidos” por “críticos audazes” e “repugna-me” por “custa-me”.

A essa altura, já colecionava uma considerável produção como jornalista, reunida em dois volumes: Contrastes e Confrontos e Peru Versus Bolívia. No ano seguinte, sairia – já póstumo – À Margem da História. Uma produção que, somada a outros textos esparsos, incluindo crônica, poesia e correspondência, compõe mais da metade da recém-lançada, e atualizada, Euclides da Cunha – Obra Completa. Na edição, organizada por Paulo Roberto Pereira, é possível ter a dimensão da obra que Euclides construiu para além do “livro bárbaro” de sua mocidade. E talvez Euclides não gostasse, mas o fato é que toda a sua obra – anterior e posterior – está sempre margeando Os Sertões.

O POETA ROMÂNTICO

Como tantos de sua geração, Euclides começou sua carreira de escritor aventurando-se pelos versos. Escreveu seus primeiros poemas em um caderno com 17 anos, aos quais deu o título de Ondas. A partir de então, sua produção poética – publicada em periódicos – será irregular, incipiente e de qualidade discutível, mas muito reveladora do universo do autor. Espremido entre o naturalismo e o modernismo, Euclides costumava ser encaixado na turma do pré-modernismo, carregando ainda cacoetes poéticos do parnasianismo. Mas quem talvez dê chave definitiva para a compreensão da obra de Euclides é o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Francisco Foot Hardman. Ele viu em sua obra aspectos contraditórios de diversas escolas, mas com base no romantismo de tradição francesa, à maneira de Victor Hugo, que combina “dramatização da história” com “discurso socialmente empenhado”. Nessa visão, a história seria uma “construção de ruínas”, uma narrativa “dramática de brutalidade”.

Em Mundos Extintos (1886), por exemplo, Euclides escreve:

Morrem os mundos... Silenciosa e escura,
Eterna noite cinge-os. Mudas, frias,
Nas luminosas solidões da altura
Erguem-se, assim, necrópoles sombrias...


Nessa “poética de extinção”, na expressão de Hardman, Euclides prosseguiria até a sua obra-prima, levando a própria métrica. Num texto de 1977, presente na Fortuna Crítica da atual Obra Completa, o poeta e ensaísta Augusto de Campos retoma uma tese do crítico Guilherme de Almeida e afirma ter identificado em Os Sertões “500 decassílabos significativos, com predominância dos sáficos (acentuados na 4ª. e 8ª. sílabas) e heroicos (acentuados na 6ª.), e pouco mais de duas centenas de dodecassílabos”. Ele mostra, por exemplo, que o romance começa com um decassílabo heroico (“O planalto central do Brasil desce...”) e termina com um alexandrino (“... as linhas essenciais do crime e da loucura”). Embora por vezes o mecanismo de extrair versos de pedaços de prosa pareça um pouco forçado, a análise impressiona ao evidenciar a musicalidade das paisagens mais descritivas – marca da faceta realista-naturalista de Euclides – de Os Sertões.

Essa matriz romântica de origem francesa também acompanhará o republicano Euclides no seu percurso político, e desde o início. Em Ondas, Danton, Marat, Robespierre e Saint-Just, líderes da Revolução Francesa, dão título cada um a um poema. Não por acaso, muito adiante, em março de 1897 – já durante a República, mas antes de Euclides conhecer o que se passava no sertão da Bahia – ele chamará o Arraial de Canudos de “a Vendeia brasileira”, referindo à província rebelada contra a Revolução Francesa em 1793.

O JORNALISTA MILITANTE

Euclides tinha o temperamento explosivo – o que acabaria lhe custando a vida quando, em agosto de 1909, resolveu enfrentar em armas o cadete Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e seu irmão, Dinorah. Na juventude, esse temperamento – combinado com certa rebeldia romântica – já havia colocado Euclides em algumas enrascadas. Durante o Império, em 1888, o escritor – então cadete da Escola Militar da Praia Vermelha – foi proibido com outros colegas de assistir ao desembarque no porto do tribuno republicano José Lopes Trovão, que voltava da Europa. Como protesto, durante um desfile diante do ministro da guerra, Tomás Coelho, Euclides saiu da formação e, em vez de levantar seu sabre em saudação, tentou quebrá-lo no joelho; não conseguindo, atirou-o ao chão – o que provocaria sua expulsão do Exército. O episódio, contudo, chamou a atenção dos republicanos de São Paulo. Em parte por conta do incidente, Euclides foi convidado pelo jornalista Júlio Mesquita para escrever no seu jornal, O Estado de S. Paulo, então Província S. Paulo. Nos textos mais incendiários, Euclides assinava com o pseudônimo Proudhon – outra referência a um francês radical, Pierre-Joseph Proudhon, um nome histórico do chamado socialismo “utópico”, que antecede o dito “científico”, de Karl Marx.

Euclides, aliás, acabaria aderindo ao socialismo em sua progressiva desilusão com os rumos da República, instaurada em 15 de novembro e 1889. Em 1891, ele participou do contragolpe do marechal Floriano Peixoto contra o presidente Deodoro da Fonseca, que havia dissolvido o Congresso. Então reintegrado ao Exército, formou-se engenheiro militar e, como primeiro tenente, passou a trabalhar para a Federação. Mas – sempre rebelde – rompeu também com Floriano, refugiando-se novamente em São Paulo como engenheiro civil e, novamente, sob as graças de Júlio Mesquita. Justamente no jornal O Estado de S. Paulo, em 1904, ele publicaria O Marechal de Ferro, perfil impiedoso de Floriano Peixoto, a quem descreve da seguinte maneira no dia 15 de novembro de 1889:

(...) deselegantemente revestido de uma sobrecasaca militar folgada, cingida de um talim frouxo de onde pendia tristemente uma espada, olhava para tudo aquilo com uma serenidade imperturbável. E quando, algum tempo depois, os triunfadores, ansiando pelo aplauso de plateia que não assistira ao drama, saíram pelas ruas principais do Rio – quem se retardasse no quartel-general, veria sair o mesmo homem, vestido à paisana, passo tranquilo e tardo, apertando entre o médio o índex um charuto consumido a meio, e seguindo isolado para outros rumos, impassível, indiferente, esquivo. E foi assim – esquivo, indiferente e impassível – que ele penetrou na história.

A essa altura, Euclides já sabia que a revolta de Canudos, esmagada em outubro de 1897, não se tratava de nenhuma Vendeia, e o que as tropas da República tinham cometido ali era, segundo suas próprias palavras, “um crime”. Literariamente, mostrava o mesmo poder de observação – e descrição – exibido magistralmente em Os Sertões, e que marcariam sua curta trajetória posterior.

O ENSAÍSTA VIAJANTE

Euclides sabia, desde jovem, o que queria. Em uma carta a Reinaldo Porchat, em 1892, o recém-formado engenheiro militar se queixava da vida monótona. “Não dou para a vida sedentária, tenho alguma coisa de árabe — já vivo a idealizar uma vida mais movimentada, numa comissão qualquer arriscada, aí por estes sertões desertos e vastos de nossa terra, distraindo-me na convivência simples e feliz dos bugres”. Utiliza aí já a palavra mágica – “sertões” –, e a cobertura em Canudos cumprira uma parte a esse destino. Mas não era suficiente. Em outra carta, enviada a Araripe Jr. em 1903, quando já desfrutava do sucesso de sua obra-prima, desabafava: “Shakespeare não faria o Hamlet se tivesse, em certos dias, de calcular momentos de flexão de uma viga metálica; nem Michelangelo talharia aquele estupendo Moisés, tão genialmente disforme, se tivesse de alinhar, de quando em vez, as parcelas aritmeticamente chatas de um orçamento. E eram gênios”. Walnice Nogueira Galvão, professora da Universidade de São Paulo, anota que esse anseio pela viagem exótica está ligado ao componente passadista pertencente ao imaginário romântico – o mesmo da poesia e da ideologia política de Euclides.

Assim, no biênio 1904-1905, o escritor não deixaria escapar sua segunda grande oportunidade. Graças a uma indicação de José Veríssimo, foi nomeado chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus, que, junto com uma equipe peruana, faria o levantamento cartográfico do rio Purus, na Amazônia. A ideia era que as duas delegações chegassem a um acordo para a delimitação de fronteiras entre os dois países, acabando com os conflitos na região. Ali, Euclides recolheria o material para o seu “segundo livro vingador”, como diria mais tarde. Em textos entre o ensaio e a crônica, o escritor voltou a promover, como em Os Sertões, a união entre a observação científica da natureza e a gente do lugar – às vezes de maneira magnífica.

No famoso Judas-Ahsverus, texto que sairia no póstumo À Margem da História, em setembro de 1909, Euclides usa a lenda do judeu errante – condenado a vagar pela terra até o Juízo Final – para falar da condição dos seringueiros do Alto Purus. São sertanejos emigrados para a selva, onde vivem como escravos, “expatriados dentro de seu próprio país”, esquecidos pelos homens e por Deus. Para eles, segundo o autor, só existe um único dia feliz: o Sábado de Aleluia. É quando, numa espécie de transe coletivo, constroem para em seguida despedaçar a tiros e pedradas uma legião de Judas feitos à sua própria feição, que descem o rio em jangadas de quatro paus.

Às vezes o rio alarga-se num imenso círculo; remansa-se; a sua corrente torce-se e vai em giros muito lentos perlongando as margens, traçando a espiral amplíssima de um redemoinho imperceptível e traiçoeiro. Os fantasmas vagabundos penetram nesses amplos recintos de águas mortas, rebalçadas; e estacam por momentos. Ajuntam-se. Rodeiam-se em lentas e silenciosas revistas. Misturam-se. Cruzam então pela primeira vez os olhares imóveis e falsos de seus olhos fingidos; e baralham-se-lhes numa agitação revolta os gestos paralisados e as estaturas rígidas.

Naquele cenário diferente, Euclides vê o mesmo “sertanejo forte” de Canudos, em luta contra a natureza e a história. Redescobriria um mundo “à margem da história” – a mesma talvez, em que Floriano (“esquivo, indiferente e impassível”) havia penetrado; a mesma que era uma “construção em ruínas”, da qual Canudos tinha sido, diante dos seus olhos, uma prova cabal. Tão definitiva que atrairia para a obra que gerou, Os Sertões, todo o engenho de um homem – quase da mesma maneira com que, no ponto em que o rio se alarga, um redemoinho atrai todos os Judas de olhares imóveis.

BRAVO!, janeiro de 2010

© Almir de Freitas


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