Um crítico implacável
Inéditos mostram um Manuel Bandeira severo na avaliação da literatura dos anos 30, apontando caminhos para o modernismo
Numa crônica sobre um livro do ensaísta Sérgio Milliet chamado O Sal da Heresia (1941), Manuel Bandeira esclarecia a razão do título: tratava-se do “sal” que deveria temperar a boa crítica — ainda que seu autor venha a ser considerado um “herege” por artistas descontentes com o exame rigoroso da obra de arte. “A verdade”, escreve, “é que não havendo choque, aí sim, não existe necessidade nenhuma de crítica.” A frase serve como uma divisa de Crônicas Inéditas II, lançamento da Cosac Naify que, previsto para o mês que vem, reúne textos do poeta pernambucano escritos para a imprensa entre 1930 e 1944. Embora levem o nome de “crônicas”, tendem mais para a crítica — uma crítica sem concessões, em que a precisão se combinava, às vezes, com certa dureza.
O que não deixa de ser surpreendente. Grande homenageado pela sétima edição da Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece de 1º a 5 de julho, Manuel Bandeira sempre foi mais identificado com o “açúcar” de uma poesia lírica e melancólica, deixando o papel de brigador do modernismo para Oswald ou Mário de Andrade. Mas o “tísico profissional” que esperou pela morte por tuberculose ao longo de toda a vida e se definia insistentemente como um “poeta menor” estava longe de ser um comentarista pacato e humilde da vida social do Rio de Janeiro na primeira metade do século 20. Nas crônicas, sobram farpas para os hábitos e gostos da elite da capital, mas também para concertos, músicas, exposições, filmes, peças e — neste volume em especial — livros.
Nos textos da década anterior, reunidos em Crônicas Inéditas I (1920-1931), predominavam os panegíricos e as reportagens didáticas sobre a vida cultural da capital, num tom exageradamente formal e solene. Já neste volume, Bandeira parece mais à vontade. Em certo sentido, é um texto mais “modernista”, de linguagem mais acessível e de estilo direto, antecipando em boa parte as análises de Apresentação da Poesia Brasileira, livro que seria publicado em 1946. No varejo do jornalismo, contudo, é maior a disposição de arriscar opiniões no confronto. Em 1933, por exemplo, ele publica no carioca Diário de Notícias a coluna Impressões Literárias, em que, a respeito dos livros recebidos, se queixa: “A vantagem dos críticos está em não comprar; a desvantagem, às vezes, em ler”.
É assim que faz troça dos beletrismos do também pernambucano Olegário Mariano, que comparou o poeta parnasiano Osório Dutra a um personagem da ópera de Vivaldi, Bejazet, “sultão adormecido, que no dorso dos camelos lentos e dos elefantes vagarosos do seu poema Castelos de Marfim, chegou mais depressa ao Petit Trianon do que aqueles que vieram arrebatados pelas asas vertiginosas dos aeroplanos”. É evidente a ligeira provocação de Mariano aos modernistas e suas máquinas, e, em parte, o tom irônico de Bandeira pode ser como uma reação em defesa do movimento lançado na Semana de Arte de Moderna de 1922, ao qual ele pertencia.
Da mesma maneira, comenta Terra Imatura, do cearense Alfredo Ladislau: “O autor gosta de latinismos campanudos como ‘largífluo’, ‘voltívolo’, que soam muito engraçados junto das vozes indígenas, como por exemplo quando fala do ‘voltívolo Surubiú’. A terminologia científica eriça-se brava: ‘ex-abrupta vomição do seu hidropírico Antisana’, ‘campos em clorido diaphonorama’...”. Em outros momentos, pega mais pesado, ao chamar de “ilegível” a tradução empolada de uma edição de O Anjo Azul, de Heinrich Mann, distante da fala comum defendida pelos modernistas. Depois de transcrever um exemplo do texto, pergunta: “Será assim o português de Blumenau?”, provavelmente se referindo à origem catarinense de um tradutor que ele chama apenas de “qualquer pessoa”.
GRILO FALANTE DO MODERNISMO
Mas Manuel Bandeira está longe de ser mero prosélito das causas da Semana de 22. Como acontece com todo bom crítico, suas análises são tão mais precisas quanto menos regidas por manifestos programáticos. Nesses momentos, Bandeira deixa de ser o “São João Batista do Modernismo”, definição de Mário de Andrade para seu papel de precursor, para se tornar uma espécie de Grilo Falante do movimento, apontando os seus descaminhos. “Os modernos andam com muito nojo do conto regional”, anota ainda em 1933, elogiando a produção do gênero daquela época. Em outros textos, afirma de passagem que não é daqueles “que renegam em bloco a estética parnasiana” e alerta para o domínio do verso livre que degenera em “perigosa facilidade”.
Nessa fase, há pelo menos um confronto mais sério com um modernista — e logo com Oswald de Andrade, um dos mentores do movimento, criador da ideia de antropofagia. Embora Bandeira sempre elogiasse a poesia do autor de Pau Brasil, em 5 de agosto de 1933 critica duramente o romance Serafim Ponte Grande em artigo na revista Literatura. Pontuado por referências irônicas à conversão de Oswald ao socialismo em 1931 (e a resistência do Partido Comunista a ela), o poeta-crítico qualifica o livro de “repetitivo” e aponta no autor um “individualismo que tanto se compraz — acima de tudo se compraz — na deformação diletante e feroz” (para ler trechos, clique aqui).
Pode-se, claro, invocar aí — e nas desavenças posteriores entre os dois — uma querela pessoal: quatro anos antes, Mário de Andrade e Oswald haviam rompido relações, e Bandeira sempre se alinhou ao primeiro, com quem se correspondia e de quem era amigo. Se o componente pessoal é inevitável, ele não invalida a avaliação técnica e as razões estéticas da crítica. Na verdade, há uma mistura das duas coisas — a mesma que está na raiz, aliás, da oposição entre Oswald e Mário e que traduz os impasses da primeira fase do modernismo. Com esse mesmo procedimento, Bandeira pode elogiar repetida e quase obsessivamente o poeta católico e editor Augusto Frederico Schmidt, que é tanto seu amigo pessoal quanto, como ele disse certa vez, o responsável por “quebrar os clichês gastos do modernismo da primeira hora”, um autor que soube aproveitar “as lições do modernismo para superá-lo”.
Porque o fundamental nesse momento é apontar um tipo de modernismo que, nos anos 30, já era passadista. E é essa independência em relação aos dogmas iniciais do movimento, essa abertura à prospecção do futuro, que talvez esteja por trás da avaliação mais impressionantemente acertada presente em Crônicas Inéditas II. No dia 19 de novembro em 1933, ainda na coluna Impressões Literárias, ele destaca (apesar de “certa secura”, como diria mais tarde) os versos torturados, católicos à maneira simbolista, do livro de estreia de um jovem de 19 anos. O livro era O Caminho para a Distância, e o poeta se chamava Vinicius de Moraes. Àquele que seria o maior sonetista do modernismo nas décadas posteriores, Bandeira recomendava o abandono do verso livre e a adoção da métrica tão vilipendiada no início pelos modernistas. “É evidente que a sua facilidade verbal está pedindo por ora a disciplina de formas menos arbitrárias”, escreveu.
Cinco anos depois, Vinicius lançava seu terceiro livro, Novos Poemas, em que abandonava aquelas metafísicas tortuosas do início. No ano seguinte, no longo texto A Produção Poética de 1938, publicado no Anuário Brasileiro de Literatura, Bandeira comemora a metrificação dos poemas do novo livro e os “pés no chão” do poeta (para ler trechos, clique aqui). E, referindo-se aos sonetos de Novos Poemas, aproveitava para colocar novamente o Grilo Falante em cena: “Todos eles são bons e vêm mostrar como andavam errados certos sujeitos quando imaginavam que ser moderno era dizer mal do soneto. Quiseram matar o soneto. Não foi a primeira vez”. Sim: Vinicius e Bandeira haviam se tornado amigos em 1936, três anos depois do primeiro texto. Mas como pôr a crítica sob suspeição diante de tamanho acerto? Com a bênção de Bandeira, Vinicius também aproveitava as lições do modernismo para superá-lo.
Nem sempre, é claro, Bandeira acerta, tampouco está imune a idiossincrasias como crítico. A propósito de Oscarina (1931), livro de estreia de Marques Rebelo, diz que o escritor carioca é um “romancista nato”, mas não esconde uma preferência pela obra hoje quase esquecida de Ribeiro Couto, tema de vários textos desde a década anterior. Já em outra ocasião, aponta Amando Fontes, autor de Os Corumbas (1933), como o de “maior fôlego de romancista” entre uma seleção que incluía o próprio Rebelo, José Lins do Rego e Jorge Amado. Fontes, outro que era famoso na época, só escreveria mais uma obra, Rua do Siriri (1937).
Nada, contudo, que comprometesse o ofício de “salgar” a vida cultural de um país que, em meio à luta contra o arcaísmo provinciano do século 19, ainda estava longe de saber para onde deveria ir. Bandeira certamente não concordaria com essa importância atribuída à sua atividade como crítico — daí dizer, vez ou outra, que o que fazia era “conversar fiado”. O que é até aceitável para quem que, tendo escrito Carnaval (1919), Libertinagem (1930) e Estrela da Manhã (1936), se definia como “simples e pobríssimo poeta lírico”.
BRAVO!, junho de 2009
© Almir de Freitas