O maior poeta do Brasil

Ferreira Gullar atravessou todos os momentos da poesia brasileira e assegurou seu lugar entre os grandes do século 20

Sobre Ferreira Gullar, ninguém menos que Vinicius de Moraes escreveu, em 1976, que se tratava do “último grande poeta brasileiro”. Na época, o maranhense estava exilado em Buenos Aires, depois de cumprir um longo périplo — Moscou, Santiago, Lima — fugindo da mão pesada da ditadura militar. Ali, um ano antes, espremido entre os golpes no Chile e na Argentina, temendo “desaparecer” em meio à proliferação de ditaduras latino-americanas, Gullar tinha escrito a sua obra-prima, Poema Sujo (1975). Poema-limite, vertiginoso na evocação da São Luís da infância do poeta, das histórias, personagens e sensações prestes a mergulhar no esquecimento da morte, Poema Sujo levaria o nome de Ferreira Gullar, de fato, ao panteão mítico dos grandes nomes da poesia brasileira, ao lado de Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e — à parte a modéstia do próprio — Vinicius de Moraes.

Se ele não era exatamente o “último” naquela época, hoje não são poucos os que o consideram o maior poeta vivo do Brasil — e não apenas pelo impacto de Poema Sujo. Nascido José Ribamar Ferreira no dia 10 de setembro de 1930, o também dramaturgo, ficcionista e crítico se aproxima das comemorações de seus 80 anos de idade não como mero sobrevivente de uma era que passou. Ferreira Gullar é, antes, um intelectual e um escritor a quem não falta o gosto pelo estudo, pelo debate e, sobretudo, pela poesia. Só neste ano, a editora José Olympio prepara a edição de dois volumes: uma reunião dos poemas de cordel escritos pelo autor nos anos 70, ilustrados pelo artista paraibano Ciro Fernandes; e Em Alguma Parte Alguma, seu novo livro de poemas, o primeiro desde Muitas Vozes (1999). Além disso, a Nova Aguilar acaba de lançar Ferreira Gullar — Poesia Completa, Teatro e Prosa, um volume de mais de mil páginas que traz, além da obra poética completa acompanhada de farta bibliografia, a reunião de textos antes esparsos, duas peças de teatro e um ensaio inéditos.

São 60 anos de carreira, período em que ele atravessou, ativamente, todos os episódios decisivos da moderna poesia brasileira. Da mesma maneira que sua obra se localizou em algum ponto entre dois extremos — o lirismo e a sordidez, o local e o universal, a multidão de vozes e a solidão —, sua trajetória revela um poeta que oscilou entre a ousadia aberta e a prevenção contra os formalismos ocos. Parafraseando Caetano Veloso, pode-se dizer que Ferreira Gullar “entrou em todas as estruturas e saiu de todas”, num movimento contínuo de experimentação de sintaxes em busca do aperfeiçoamento da própria voz — uma busca pelo novo em que ele nunca perdeu de vista suas origens.

Foi assim desde quando, ainda no Maranhão e incrivelmente atrasado em relação aos modernistas, Ferreira Gullar estreou na literatura, em 1949, com as redondilhas, decassílabos e alexandrinos de Um Pouco Acima do Chão, livro de lustroso sotaque parnasiano. “Talvez eu nasça amanhã”, diz o último verso do último poema desse livro que ele, mais tarde, renegaria. Como se cumprisse uma profecia, o poeta, já vivendo no Rio de Janeiro, abandonou a régua e a rima no livro A Luta Corporal (1954). E o fez com autoridade e desassombro: na concepção de uma poesia visual, formada por estilhaços de palavras que exploravam novas possibilidades sonoras, Gullar não apenas superava certo prosaísmo que rondava a poesia do modernismo da época, como também antecipava os procedimentos do concretismo. Poeta visceral, ele, contudo, desembarcou do movimento atirando contra a racionalização “matemática” promovida pelo grupo paulista — Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos à frente. O racha provocou uma das cizânias mais persistentes e ferozes da literatura brasileira, até hoje responsável por uma resistência a Gullar em certos círculos de São Paulo.

O ciclo, poém, estava estabelecido. Inovador mas avesso ao dogma, Gullar deu prosseguimento, na prática, à profunda reflexão sobre o papel da poesia. Em 1959, lançou as bases do movimento neoconcreto, a partir do qual construiu o corpo principal de sua (polêmica) abordagem das artes plásticas. Já nos anos 60, ingressou no Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes, iniciando uma fase “popular” e engajada politicamente, cujas ramificações se estenderam ao teatro. Mas, se as frias ortodoxias estéticas não serviam a Gullar, o mesmo se aplicaria às normatizações de uma arte concebida como assessório da revolução social.

Na soma dessas idas e vindas, forjou a poesia que conquistaria Vinicius de Moraes. Naquele ano de 1976, foi Vinicius quem trouxe ao Brasil a fita cassete gravada pelo próprio Ferreira Gullar com Poema Sujo, promovendo “sessões” no Rio de Janeiro para exibir a todos a poesia “orgânica, crua, fecunda, emocionante” daquele intelectual maranhense que, no exílio, procurava traduzir a totalidade de sua própria existência.

O curioso é que a crueza de Poema Sujo — e também de Dentro da Noite Veloz (1975) — teve a capacidade tanto de elevar Ferreira Gullar àquele panteão mítico de poetas quanto de aproximá-lo (por conta das circunstâncias, inclusive) da “poética deliberadamente impura da poesia marginal”, na expressão do crítico José Guilherme Merquior. Nesse momento, Ferreira Gullar, que voltaria ao Brasil em 1977, ainda trafegava naquele território entre os extremos. Viveu os movimentos do seu tempo, apontou caminhos, experimentou. Mas sempre, ontem como hoje, desempenhando o papel de tradutor de sua própria história, a de um homem que — como todos — está num ponto difuso entre a infância e a morte.

BRAVO!, março de 2009

© Almir de Freitas


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