Violência vazia

Bem-sucedido no gênero, O Invasor, de Beto Brant, reitera o senso comum sobre a realidade caótica do país

Com uma coleção notável de prêmios por onde passou, inclusive o de Melhor Filme Latino-Americano no Festival de Sundance, O Invasor, de Beto Brant, estreia neste mês como provavelmente o exemplo mais bem-sucedido de um estilo que se vale da violência urbana para expor as mazelas e as contradições da sociedade brasileira. Mas isso não quer dizer que o filme seja bom. A despeito dos talentos do diretor e do escritor Marçal Aquino, cuja obra deu origem a esta e às produções anteriores de Brant – Os Matadores (1997) e Ação entre Amigos (1998) –, O Invasor representa apenas o ápice de um tipo de cinema que, amparado numa produção literária, há anos vem procurando, com maior ou menor eficiência, dar conta da realidade do país. Nessa evidente dificuldade, o que se acabou cristalizando foi um gênero que simplesmente imita o imaginário coletivo, hesitante entre o mero entretenimento de suspense e o denuncismo vazio.

A trama do filme, em si, não compromete, mas já dá algumas pistas: dois empreiteiros de personalidades diferentes, Gilberto (Alexandre Borges) e Ivan (Marco Ricca), contratam Anísio (o titã Paulo Miklos) para matar o sócio que se nega, por razões éticas, a fechar um contrato com o governo. Feito o “serviço”, aos poucos Anísio decide deixar sua vida de periferia para se aproveitar do estilo de vida dos empresários, invadindo suas vidas, sua empresa e até namorando a filha maluquete de sua própria vítima, Marina (Mariana Ximenes). Muito bem. O problema, crônico, está na maneira como a narrativa é montada. Na busca de um suposto realismo, a história vai sendo preenchida, como que por pecinhas de montar, por uma coleção de obviedades extraídas do noticiário: o Estado cartorial e corrupto, a degradação moral das elites, a polícia bandida, a impunidade disseminada, o contraste do centro com a periferia, além, é claro, de sexo, drogas e rap. Nessa soma de esquematismos, ao espectador só resta menear a cabeça, concordando. “Está cada vez mais difícil viver nessa cidade”, diz a mulher de Ivan após o assassinato do empreiteiro. Ao fundo, a tevê mostra imagens de uma rebelião de presos. Meneia-se a cabeça. Como discordar?

O resultado disso é que o realismo procurado soa morno, insosso e simplista, não acrescentando nada além do que o senso comum já sabe. Não há provocação, apenas busca de assentimento. A verdade é desagradável, mas ela salta aos olhos: na sua leitura moralista e parcial, filmes como O Invasor mostram um desconhecimento básico – porque difíceis de identificar – das nuances e das contradições que existem entre os bem-postos na sociedade, de como se dão as tramóias políticas e de favorecimento, de como vive a acossada classe média e, finalmente, do perfil daqueles miseráveis que optam pelo trabalho degradante ou pela violência.

As razões desse tratamento superficial são muitas, mas devem-se em grande parte a uma já longa tradição da cultura média brasileira, que prosperou sobretudo – e isso é essencial – sobre um tipo de literatura que tem alimentado os argumentos cinematográficos. Antecedentes remontam a filmes como Faca de Dois Gumes (1989), de Murilo Salles, que, baseado na obra de Fernando Sabino, já se debruçava sobre a corrupção e a truculência da elite nacional, que vai do crime passional à brutalidade advinda de negócios ilícitos. Mas foi sem dúvida com Rubem Fonseca que essa mimetização da violência urbana ganhou um estilo mais definido e ares de cinema bem-feito sobre literatura sofisticada, a começar, principalmente, com A Grande Arte (1991), de Walter Salles, que desce ao mundo da prostituição e do tráfico de armas. O papel de Rubem Fonseca, frise-se, é crucial na evolução desse gênero que formou sob a sua sombra, em maior ou menor grau, autores como Patrícia Melo, Fernando Bonassi, além do próprio Marçal Aquino de O Invasor.

Isso fica claro no caso da produtora Conspiração Filmes, que apesar de buscar na obra de Nelson Rodrigues a trama para Traição (1999), fica presa no mesmo círculo vicioso. Num dos episódios, Cachorro!, a roteirista Patrícia Melo e o diretor José Henrique Fonseca – justamente filho do autor de Feliz Ano Novo e O Cobrador – resolvem deixar de lado o mundo ordinário de cada um, característico do dramaturgo e cronista, para investir pesado na violência conjugal. Patrícia Melo, aliás, é roteirista também de outro filme adaptado de Rubem Fonseca, Bufo & Spallanzani (2000), de Flávio Tambellini. E mais virá: do próprio Tambellini é o prometido O Homem e Sua Hora, filme baseado no romance O Matador, de Patrícia Melo, com roteiro de ninguém mais, ninguém menos que o próprio Rubem Fonseca.

Existem, é claro, danações piores. Embora simplista, o filme de Beto Brant e seus congêneres está longe de desastres cometidos em produções anteriores, que tentaram ir além, expondo fraturas individuais nesse mundo de brutalidade. O roteirista Jean-Claude Bernardet e a cineasta Tata Amaral mostram o quanto é difícil levar para a tela argumentos que, no papel, parecem bons. Um Céu de Estrelas (1996), “adaptação livre” do romance de Bonassi, tenta explorar a atração e a dependência psicológica da cabeleireira pelo ex-noivo e assassino de sua mãe, um metalúrgico desempregado. Durante o cerco policial à casa de periferia em que estão – mostrada por uma cobertura jornalística de fazer corar –, cenas de declamação de um salmo, de um cafezinho passado no coador e de um par de ovos fritos no jantar, entre outras sequências constrangedoras. Em Através da Janela (2000), já com a participação de Bonassi no roteiro, o erro é repetido na história criada por Bernardet, em que um garoto de classe média aproveita-se de uma caricata relação erótica com a mãe para fazê-la matar um rapaz sequestrado. “Uma assassina”, exclama ela pouco antes de mergulhar, sabe-se lá por que (e por intermináveis segundos), uma camisa do filho num balde de água com sabão.

É da obra de Bonassi, aliás, que também se produziu outro filme em cartaz, Latitude Zero (2000), concebido originalmente para teatro. Sofre-se bem menos na mão do diretor Toni Venturi, com suas amplas tomadas da vastidão do Mato Grosso e uma cuidadosa preparação de atores para interpretar personagens mais bem construídos. Mas volta-se, uma vez mais, aos brinquedos de montar quando a narrativa leva para os cafundós do Brasil um policial militar que matou algum branco endinheirado num bairro errado de São Paulo. Junto dele está a dona do bar falido após o esgotamento de um garimpo, também ela uma “fugitiva” da grande cidade e grávida do mesmo figurão da PM paulistana que protege o soldado bandido.

Os exemplos desse realismo morno são inúmeros, mas há exceções que, como tais, costumam causar polêmica. É o caso de filmes como Cronicamente Inviável (2000), de Sérgio Bianchi, e Domésticas (2001), de Fernando Meirelles e Nando Olival. Na contramão dessa tendência predominante, a prioridade de Bianchi era sobretudo não economizar recursos para provocar indignação com a miséria, a moral estreita e as mazelas disseminadas em toda uma sociedade viciada – não poupando ninguém nem preocupado em apaziguar consciências bem pensantes, o que inclui, naturalmente, cineastas e escritores. Já em Domésticas, tratava-se de tentar transcender a mera reprodução de uma desigualdade por meio de um bom humor franco e direto, sem medo de mexer com os brios do politicamente correto. Um acabou sendo tachado de pessimista; outro, de elitista. Juntos, contudo, foram capazes, nas suas nuances e nos seus riscos, de dizer mais da realidade brasileira do que os clichês fáceis, tão facilmente aceitos por serem tão inofensivos.

O fato é que, nessa complicada transição entre literatura, roteiro e filmagem, permeada de pudores e indecisões, o que resta é uma leitura que, além de reducionista da realidade brasileira, não entretém nem tampouco é eficaz, nos sentidos habituais que se atribuem a essas palavras – divertir (por que não?) e denunciar (por que não também?) com propriedade. Como estão, presos a arquiteturas fixas e esquemas bem dosados para a compreensão e o gosto comum, caem logo no vazio após terminados, como uma conversa de bar encerrada pelo adiantado da hora, ou por considerações jornalísticas que se esgotam quando a página, sem misericórdia, tem de estar pronta para ser impressa. Acabou-se, foi-se tudo. O resto é o dia seguinte, é vida privada assolada pelo medo, com uma multidão de sísifos violentados empurrando suas pedras morro acima, diante das urgências reais da vida. Quais são mesmo? A resposta, ninguém vai negar, é difícil. Mas ela tem estado longe de ser encontrada no cinema brasileiro.

BRAVO!, abril de 2002

© Almir de Freitas


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