Sem me alongar demais na efeméride, hoje faz 30 anos que Glenn Gould morreu. No alto, foto de Gordon Parks, tirada em março 1956; no player acima, à esquerda (clique para ouvir), Variações Goldberg, BWV 988 – Aria, de Bach, na interpretação do pianista canadense. Abaixo, trecho de O Náufrago, romance em que Thomas Bernhard mostra como o contato com o gênio pode ser devastador para a vida e o caráter dos simples mortais. A tradução, para a edição da Companhia das Letras (144 págs., R$ 43,50), é de Sergio Tellarolli.
(…) Glenn não sucumbiu a essa doença pulmonar, pensei. O que o matou foi a falta de saída em cuja direção ele tocou sua vida ao longo de quase quarenta anos, pensei. Naturalmente, não desistiu do piano, pensei, ao passo que Wertheimer e eu desistimos, porque não transformamos o tocar piano na monstruosidade que isso se tornou para Glenn, uma monstruosidade da qual ele nunca mais escapou e da qual, aliás, nunca teve vontade de escapar. Wertheimer leiloou seu Bösendorfer no Dorotheum; eu, para não ser mais atormentado por ele, doei meu Steinway à filha de nove anos de um professor de Neukirchen, nas proximidades de Altmünster. A menina arruinou meu Steinway em pouquíssimo tempo, um fato que não me provocou dor; ao contrário: observei aquela destruição estúpida com um prazer perverso. (…) Eu tinha que tocar melhor do que Glenn, mas isso era impossível, estava fora de questão, e por isso abandonei o piano. Numa manhã de abril, não sei mais exatamente o dia, acordei e disse a mim mesmo: chega de tocar piano. E nunca mais encostei um dedo no instrumento.