Rota de vulcões

Lado a lado com a Cordilheira dos Andes, entre imensos lagos azuis, termas quentinhas, centros de esqui e bosques deslumbrantes, o sul do Chile é pura força da natureza

“Ao pé dos vulcões, junto aos ventisqueiros, entre os grandes lagos, o fragrante, o silencioso, o emaranhado bosque chileno…” Assim Pablo Neruda inicia sua autobiografia, Confesso Que Vivi, e assim se pode perfeitamente começar a apresentação de Araucanía, região no sul do Chile em que o poeta, prêmio Nobel de Literatura em 1971, passou a in-fância e a adolescência. “Quem não conhece o bosque chileno”, completa ele adiante em suas memórias, “não conhece este planeta.”

Não é brincadeira. Cerca de 600 quilômetros ao sul de Santiago, a região conta com uma biosfera sem igual no mundo, resultado da violenta formação geológica que ergueu a Cordilheira dos Andes e quase jogou to-do o território chileno, estreito como quê, dentro do Oceano Pacífico.

Remanescentes dessa época, ali sobem às alturas, terríveis e fascinantes, os vulcões que povoariam as memórias e a obra de Neruda. Há coisa de uma dúzia deles, percorrendo feito um rastro a porção andina, mais ao norte da província, e dos grandes lagos, ao sul, avançando pela Patagônia chilena, quase lado a lado com a espinha dorsal da cordilheira.

Em torno de suas encostas nevadas, parques e reservas de preservação ambiental guardam pradarias, florestas de araucárias e outras espécies nativas, imensos lagos e termas quentinhas. Nas cidades e nos campos, cujas histórias remontam à resistência ferrenha dos índios mapuches aos invasores espanhóis, a tradição cultural e o patrimônio natural fazem par e dão o tom de uma infraestrutura turística capaz de aliar conforto e aventura, sempre de olho na sustentabilidade.

Bote ainda na conta as estações de esqui amigáveis aos iniciantes, uma gastronomia excepcional, os cassinos e uma variedade sem fim de esportes e atividades ao ar livre, além de preços acessíveis e um povo gente boa como só os sulistas chilenos podem ser, e você terá as razões para, uma vez em Santiago, embarcar em mais um avião, rumo ao sul.

TEMUCO
Neruda, Che Guevara e Neymar

Uma hora e meia de voo depois chega-se a Temuco, capital de Araucanía. O melhor modo de conhecer o essencial dessa cidade de 300 mil habitantes é, exatamente, seguir as pegadas – as huellas – de Neruda. O roteiro inclui 18 pontos de interesse, divididos em cinco regiões. A principal é no popular bairro Estación. Ali, na Calle Lautaro, número 1436, se vê a fachada laranja, encimada por um painel colorido, no estilo muralismo soy-loco-por-ti-america, onde o poeta viveu entre 1906 e 1921.

Pertinho está a Feria Pinto, merca-dão ao ar livre com cerca de 700 bancas reunindo tudo o que se produz na região, dos pinhões das bandas an-dinas aos pescados na zona litorânea – um copinho de ceviche ali sai por coisa de 10 reais. Tradicionalíssima, é principalmente uma feira de pequenos produtores, sobretudo mapuches, que compõem oficialmente mais de um terço da população de Araucanía.

É essa a feira que aparece no filme Diários de Motocicleta, de Walter Salles, quando o jovem Che Guevara e o ami-go Alberto Granado pararam na cidade, em 1952, com a Norton 500, a “La Poderosa”, quebrada. Ao lado fica o neoclássico edifício Marsano, com seu domo barroco, que no filme serviu de fachada para o jornal El Austral, em que a dupla, sem dinheiro e atrás de prestígio para consertar a moto, exagerou suas aven-turas pela América Latina.

Dois quilômetros adiante, o destino é o Museu Nacional Ferroviário, abrigado no antigo centro de operações dos trens no sul do Chile, onde o pai de Neruda, José, era maquinista. Hoje, o prédio circular da casa das máquinas abriga 14 lindas locomotivas a vapor – uma beleza pra quem curte um Ferrorama.

Por ali, entre edifícios históricos e gramados bem cuidados, dormentes sustentam vagões antigos – entre eles presidencial, usado até o governo de Salvador Allende. Como o presidente deposto, o transporte ferroviário massivo é apenas uma memória no Chile. A estação em si fica por ali, mas as linhas hoje, reduzidas, não se comparam às do passado.

Em outra parte, no ponto mais alto de Temuco, está o Monumento Natural Cerro Ñielol. A área, que reúne boa parte da flora da região, soma 900 mil metros quadrados de bosques, cortados por sete senderos (trilhas), pontuados de mirantes para a cidade. Um respiro para uma comunidade em que boa parte das casas conserva a simpática, mas asfixiante, tradição de se aquecer no inverno e cozinhar a qualquer tempo com lenha.

O circuito off-Neruda inclui o bonito Estadio Germán Becker – que lota em dias de jogos do Club de Deportes Temuco, time do ex-jogador (mapuche) Marcelo Salas recém-chegado à Primeira Divisão. Foi lá também que a Seleção Brasileira venceu o Peru por 2 a 1 na Copa América de 2015. Antes do jogo, Neymar bateu uma bolinha com os fãs na saída do hotel-cassino Dreams. Bicampeões continentais, os chilenos amam o futebol brasileiro, mas não deixam de rir da coincidência de o hotel ficar localizado – veja bem – na Avenida Alemania. Isso, claro, antes da final olímpica.

CURACAUTÍN
O bosque e o vórtice cósmico

Quando entraram no Chile vindos da Patagônia argentina, Guevara e Granado pegaram a Ruta 5 Sur, parte da Rodovia Panamericana que corta o continente e o país de norte a sul – o que dá ideias para outra viagem… Por ora, bastam 30 quilômetros na rota lendária até Lautaro e, daí, mais 60 até Curacautín, em direção à Araucanía Andina.

No caminho em leve aclive, entre fazendas defendidas do vento austral por álamos, campos de trigo e aveia e bosques cultivados de pinheiros e eucaliptos, já se veem ao longe os três vulcões que se distribuem no horizonte dos arredores: no meio, inativo e mesclado a um glaciar, a Sierra Nevada; à esquerda e à direita, respectivamente, o Lonquimay e o Llaima, ativos e classicamente cônicos. Fora do campo de visão ainda estão o Tolhuaca, mais ao norte, e a Cratera Navidad, que se formou quando o Lonquimay entrou em erupção pela última vez, no Natal de 1988.

Quanto mais se sobe, mais a paisagem corresponde ao bosque temperado chuvoso que encantava Neruda. Entre as espécies de árvore nativas destacam-se o nothofagus, raro no mundo, com seu tronco acinzentado, e, acima dos mil metros, a araucária, que batiza a região.

Quem me explica tudo é José Luiz Alvarez, um ex-projetista de senderos que há seis anos se tornou, com a mulher, um dos pioneiros do turismo nessas bandas. O casal toca o Vortice, lodge estilo gampling mergulhado na natureza, onde se pode dormir em domos instalados nas árvores, sob o negrume estrelado artártico, ao som da corredeira do Rio Cautín. É bacana mesmo. Sobre o nome do lugar, José diz que é uma referência ao fato de a região estar em um dos vórtices do planeta, lugares mais aptos a receber o fluxo de energia do cosmos.

Acredite-se ou não em energias, o fato é que José faz a coisa especial acontecer. Na manhã do dia seguinte, adentramos, em um 4×4, no Parque Nacional Conguillío, área de preservação de 60 mil hectares no sopé do Vulcão Llaima tomada de araucárias centenárias, gigantes. Junto está Ariel Quezada, chef mapuche do restaurante do Vortice, o La Esfera, especialista na fusão das cozinhas andina e mapuche. À beira da imensa Laguna Conguillío, com a Sierra Nevada ao fundo, ele desembarca seu equipamento de cozinha e, vestido com um jaleco azul com as bandeiras chilena e mapuche, prepara o almoço: truta recheada com cogumelos selvagens (changle e digueñes), acompanhada de risoto de quinoa, trigo mote e cuscuz de pinhão. O vinho branco desce bem.

Desse ponto, abre-se uma dúzia de trilhas, onde, a depender da época do ano, se pode ver a vermelha copihue, a flor nacional do Chile. No inverno, o trekking e o rafting podem ser trocados por snowboarding, caminhadas com raquetes ou esqui pelas encostas do Llaima. Imponente, considerado o segundo mais perigoso do país, o vulcão entrou em erupção pela última vez em 2008. Mas nada de pânico: toda atividade sísmica do país é permanentemente monitorada, e ninguém é pego de surpresa pelas (lentas) correntes de lava.

Fora do parque, a CH-181, a Ruta Internacional que vai dar nos Andes, leva a cachoeiras como o Salto del Indio e o lindo Salto de La Princesa, que despeja sua água em meio a formações rochosas de basalto. Seguindo a rodovia, uma ciclovia de 12 quilômetros colados à vegetação, entre Manzanar e Malalcahuello, dá novo uso à antiga linha ferroviária. Ainda no caminho, espalham-se lagos termais, em instalações das mais rústicas, caso do aconchegante Cañon del Blanco, às mais luxuosas, como as do Malalcahuello Thermal Hotel & Spa, de cara para Vulcão Lonquimay.

Adiante, uma bifurcação conduz, à direita, ao Las Raíces. Ex-túnel ferro-viário, tem altura e largura suficientes apenas para um carro em seus quase 5 quilômetros de extensão. A outra via, à esquerda, leva à Reserva Nacional Malalcahuello, onde fica o pequeno e tranquilo centro de esqui de Corralco, na encosta do Vulcão Lonquimay. Voltado para o sudoeste, o complexo se gaba da qualidade de sua neve, natural. São 29 pistas, muitas amigáveis para principiantes, cuja queda, de quase 1 quilômetro, termina à porta de um hotel de luxo novinho em folha.

Na despedida do Vortice, Ariel prepara o jantar no La Esfera: perna de cordeiro reduzida em vinho tinto e temperada com morchella (um fungo silvestre) e pimenta merkén, seca e defumada. Agora, o vinho é tinto.

PUCÓN
Lago gélido, vulcão agitado

Mais 190 quilômetros de estrada ao sul levam à Araucanía Lacustre. Mais famosa, cheia de infra turística, Pucón é uma cidadezinha plana, de edifícios baixos, que prosperou à margem do lago e à sombra do vulcão que levam o mesmo nome, Villarrica. O lago, uma beleza de azul gélido cercado de vegetação nativa, é o maior dos que se veem na região.

E o vulcão… Bem. Os mapuches o chamam de Rucapillán, a “casa do de-mônio”. Perfeitamente cônico, é o mais perigoso do Chile – entrou em erupção pela última vez em 2015, e está sempre soltando sua fumacinha. Mas nada que assuste os cerca de 20 mil habitantes da cidade, que, ao contrário, souberam aproveitar a fama.

Daí que o principal programa por ali é a caminhada ao topo do vulcão, a 2 800 metros de altitude. Se as condições meteorológicas são boas, os dispostos entusiasmados saem por volta das 6 da manhã para quatro horas de subida pesada na neve. Mas os guias garantem que não precisa ser atleta para chegar à beira da cratera de 200 metros de diâmetro e ver, lá no fundo, o lago de magma permanente onde o diabo, muito à vontade em casa, faz seu fumaceiro. A volta leva coisa de três horas.

Se faltar fôlego, coragem ou as duas coisas, vale subir de carro até a estação de esqui, a 1 200 metros, para tomar um café e ver a imensidão do lago e, longe no horizonte, as costas do vulcão – aquele mesmo – Llaima.

À parte os vulcões, atividades não faltarão. Entre o parque e a reserva nacionais que levam o nome que se dá a quase tudo por aqui (Villarrica), de tudo também se pode fazer um pouco: trekking, espeleologia em cavernas vulcânicas, mountain bike, tirolesa, vela, pesca, cavalgadas… A corredeira do Rio Trancura é perfeita para rafting e caiaque, e dá até pra pegar uma praia de areia negra num dos lagos da região – uma das mais populares fica no Caburgua, nos arredores da cidade. Por lá, estão também os chamados Ojos de Caburgua, um conjunto de quedas-d’água que forma espetaculares piscinas naturais. Fique à vontade para armar a barraca – há vários campings espalhados pela vizinhança.

Para os exaustos com tanta atividade (ou para quem tanta atividade já desencoraja de saída), há outras alternativas – caso dos 14 centros termais, alguns instalados em hotéis-spa. Um dos mais antigos fica em Huife, cerca de 30 quilômetros a oeste, nos limites do Parque Nacional Huerquehue. São quatro piscinas – uma coberta, outras três ao ar livre, à beira do Rio Liucura, onde os valentes dão um mergulho depois de amolecerem na água a 39ºC.

À noite, de volta à cidade, o roteiro folgazão pede uma visita à Calle Fresia, que abriga uma das maiores diversidades gastronômicas do país… Só não deixe de comer ceviche e beber pisco sour – coisa que pode ser feita numa passadinha pelo cassino, parte da rede chilena que leva o sugestivo nome de Enjoy.

HUILO HUILO
Terra dos pumas e dos hotéis exóticos

Saindo de Araucanía, uma incursão de mais 120 quilômetros ao sul leva às fronteiras da Patagônia chilena, na região de Los Ríos. Ao fim de um caminho em grande parte margeado pelo gigantesco Lago Panguipulli (“terra de pumas”, em mapuche), chega-se à Reserva Biológica Huilo Huilo, onde, mais que em qualquer outro lugar do roteiro, a natureza faz dobradinha com o luxo.

Colada à comunidade de Neltume, a área de impressionantes 100 mil hectares impressiona ainda mais por ser privada: pertence à família chilena de origem alemã Petermann, dona de uma holding de siderurgia que fez fortuna com negócios ligados à mineração de cobre. Ali, nos primeiros anos do século 21, o patriarca, Victor, deu início a um projeto de preservação e desenvolvimento local, baseado em turismo sustentável. Daí nasceram os seus exóticos, e já famosos, hotéis.

Com a ideia de integrar os edifícios à natureza, o jovem arquiteto chi-leno Rodrigo Verdugo criou um complexo que tem como carro-chefe o Nothofagus. Circular, todo de madeira e misturado às arvores, o hotel conta com um pátio interno aberto, onde uma árvore rauí se ergue até uma claraboia. Interligados estão os hotéis Montaña Mágica, um cone de pedra coberto de vegetação nativa, onde corre uma pequena cascata, e Reino Fungi, inspirado nos cogumelos que lhe crescem à volta. Mais isoladas, para os lados do Rio Fuy, estão as cabanas luxuosas do Nawelpi Lodge, aonde os hóspedes chegam pilotando carrinhos de golfe numa passarela de madeira construída no meio da floresta.

Mesmo que seja grande a tentação de ficar estirado na cama dos quartos com calefação, diante das amplas janelas que dão para a paisagem, há outros compromissos. Como ir, logo ali, à cervejaria artesanal Petermann e degustar os cinco tipos de cerveja feitos no local; ou ao Museu dos Vulcões, ainda em construção, que guarda artefatos arqueológicos; ou ao Bosque dos Cervos, em que dezenas de bambis se reúnem de quando em quando para comer sob passarelas erguidas para os turistas e suas máquinas fotográficas.

Mais além, as costumeiras trilhas e cachoeiras – entre elas, os 37 metros de altura do Salto Huilo Huilo, destino de excursões noturnas. Em outra parte, com os cabos interligados pela copa das árvores, há tirolesas desafiadoras de até 90 metros de altura e 500 metros de extensão cada uma. Na agenda, pode acrescentar flutuação e rafting no Rio Fuy, observação de pássaros, cavalgada, paintball, tour em snowmobile e navegação pelo Lago Pirehueico, que leva a termas.

E, claro, temos vulcão. Com 2 400 metros, o (por ora) inativo Mocho-Choshuenco tem duas crateras envoltas em neve permanente. Dessa vez, encarei a subida com guia e um casal de chilenos até o platô intermediário – duas horas de caminhada íngreme, gelada, a até 1 900 metros de altitude. O esforço foi recompensado pelo melhor cenário da viagem, com três vulcões percorrendo o horizonte a nordeste: nosso velho conhecido Villarrica (mesmo dali, tão longe, dá pra ver a fumacinha do diabo), o Quetrupillán e o colossal Lanín, que se ergue espetacularmente acima das nuvens, atrás da Cordilheira dos Andes, já nos domínios argentinos, perto da fronteira. Como se fossem adornos da paisagem, um lago em cada canto, o Neltume e o Pirehueico. Para quem sobe mais 500 metros, a vista de 360 graus do topo bota no pacote visual, a oeste, o Oceano Pacífico. Sim, um país estreito como quê.

E, e em toda parte nessas paragens do sul do mundo, os bosques chilenos. Bem-vindo, diria Pablo Neruda, a este planeta.

Viagem e Turismo, outubro de 2016
© Almir de Freitas